• Carregando...

Ao final de uma mesa redonda sobre literatura, um dos ouvintes o procurou para dizer que ele falava de literatura como se estivesse em uma mesa de bar, nem parecia uma palestra. Disse apenas isso, com um brilho nos olhos, e se retirou do auditório, junto com as demais pessoas.

Ele vinha se dedicando à literatura como profissão: lecionava na faculdade, fizera doutorado, escrevera ensaios acadêmicos, mas lentamente fora se distanciando da linguagem mais sisuda do professor, que vê os livros como material de pesquisa, para se aproximar de uma visão mais informal. Então, saiu-se com essa:

– O bom leitor atua sempre na informalidade.

Era mais uma de suas frases de efeito. Mas, como as outras, não era apenas uma frase. Ela trazia uma verdade na qual ele cada dia acreditava mais. Se, na vida civil, a informalidade era sinal de situação precária. Na cultura, ela tinha um sentido positivo. O bom leitor se relaciona com os textos sem nenhum compromisso, sem uma condição contratual. Lê porque algo interior o empurra para o texto. Texto e vida são uma coisa só. Então, para falar a este leitor já livre do serviço escolar obrigatório da leitura, era preciso usar uma linguagem próxima dos momentos de oralidade.

Claro que isso não é aceito por seus pares, que usam a linguagem acadêmica, e todos os seus penduricalhos eruditos, como um sinal de distinção. Jamais ser confundido com um leitor comum. Mas fazia tempo que ele tinha deixado de querer ser aceito seja por que grupo fosse.

E assim acabou desenvolvendo esta linguagem-de-mesa-de-bar, mesmo quando convidado para alguma banca de mestrado ou de doutorado, provocando repulsa em seus colegas. Nas suas aulas no curso de Letras, notou que os alunos, que chegavam até ali sem ter se formado leitores, começavam a nova vida, a de futuros letrados, se debruçando sobre textos teóricos e históricos sobre autores, e criando assim uma visão meramente burocrática dos livros. Lê-se tal autor para compreender tal aspecto da linguagem, da história, da teoria literária, da filosofia. Precisamos dar boa fundamentação teórica, defendem os seus colegas.

Se o ensino básico e o fundamental não fizeram daqueles alunos leitores de literatura, a universidade não pode simplesmente ignorar isso. Talvez como provocação, ele começa seu curso dando como bibliografia apenas romances e livros de poemas e de contos. Os alunos, já viciados, perguntam sempre dos ensaios sobre as obras. Ele diz que um livro se basta a si mesmo.

– Mas como vamos entender o livro, professor?

– Com o que vocês são, com o que trazem de experiências.

E eles invariavelmente riem, como que dizendo que, então, não conseguirão entender, porque eles ainda não são pessoas cultas.

E as aulas seguem com os problemas de sempre. Poucos lêem os livros indicados. Os que lêem não os sentem. Até chegar a Macunaíma, de Mário de Andrade, que é o campeão de reclamações.

– Que livro mais chato.

– É incompreensível.

– Não sei como alguém pode gostar de algo assim.

Ele então lê trechos do livro em voz alta durante as aulas. A turma ri das safadezas do herói, dos absurdos, das explicações mágicas para os objetos modernos.

– Por que vocês estão rindo? O livro não era chato?

Mas eles continuam alegres, pois o livro já os cativou. Não pela erudição do autor, mas pelo humor que escorre de cada página.

Ele chega enfim a um ponto do curso que o agrada.

– Não se lê literatura como se fosse um diagnóstico de câncer, meus caros.

– Credo, professor.

– Um livro deve ser lido sem o menor respeito. Não leiam como se estivessem numa prova. E sim como se estivessem entre amigos. Macunaíma deve ser antes de mais nada um amigo de vocês.

E todos juntos vão acompanhando as peripécias do herói malandro, embora um ou outro aluno ainda pergunte se não é possível indicar uma bibliografia de apoio.

– Claro, leia Cobra Norato, do Raul Bopp.

– Não, professor. Uma bibliografia teórica, que nos ajude a compreender as questões profundas.

– O que ajuda a compreender os livros não é a leitura do que outras pessoas disseram dele, mas nossa capacidade de estabelecer relações com a vida e com outros livros. Quanto mais livros de literatura lermos, melhor compreenderemos os próximos que vamos ler.

É claro que os alunos se frustram com este tipo de aula. Mas ensinar é antes de mais nada provocar frustrações, criando ambiente para que a pessoa construa sozinha os sentidos de que precisa. Os alunos gostariam de uma leitura pré-fabricada do livro. Seria tudo mais fácil, por mais difícil que fossem as análises críticas, pois lhes dariam a segurança de que estão compreendendo a obra. Mas o professor não vai dar esta segurança simplesmente porque ela não existe.

E segue com suas aulas nada sérias, levando os alunos a rir dos personagens, a se emocionar com seus dramas e a dar depoimentos sobre fatos da vida pessoal, na grande confusão de ser e ler.

Em um dos encontros sobre literatura, alguém lhe perguntou o que era preciso para ser um bom professor de literatura.

– Amar os livros literários mais do que quaisquer outros.

– Mas e os métodos de trabalho?

– O amor cria os seus próprios métodos. Mas os métodos nunca criam o amor.

– O professor deve então ser um amador?

– Isso mesmo: um amador; nos dois sentidos da palavra.

Infelizmente, a maioria de seus alunos em breve fará parte do mercado formal da leitura.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]