Vinte lentilhas

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1. Primeira lição

Quem aprendeu a ler para aprender algo ainda não aprendeu a ler.

2. O pior trabalho

O operário sente cansaço depois de executar uma tarefa. O ser imaginativo, antes de começá-la.

3. Método de leitura

Quem se dedica a ler deve evitar a leitura dos livros que ninguém lê e dos livros que todos leem.

4. Das possibilidades

O operário olha com orgulho o mundo ordenado. O ser imaginativo estremece diante de tudo que pode ser criado.

5. Multidão de um homem só

Todo mestre quer se replicar nos discípulos, e se faz ardiloso ventríloquo.

6. Elogio da dificuldade

Desistimos de algumas tarefas não porque não possamos executá-las, mas simplesmente por as acharmos fáceis demais.

7. Desencontro marcado

Ele estava sempre pronto e a postos na hora certa, mesmo sabendo que não viria ninguém.

8. Divide-se quarto

O solitário se barbeia para o deleite do próprio espelho.

9. Vigilância 24 horas

Temem os ladrões apenas aqueles que não têm mais força para repor os bens que possam vir a ser roubados.

10. Distância

Meu filho se deita no chão para ficar na altura de seus brinquedos. Do alto de minha poltrona, eu já não os enxergo.

11. Vire no avesso ao lavar

O que chamam de solidão é para ele paz; e a diversão, tormento. O solitário é um ser que só tem o lado de dentro.

12. Sísifo

Todas as vezes que lhe roubavam os objetos, ele construía outros ainda mais perfeitos.

13. Mudança de cenário

Quando o pedreiro do cemitério toma a cena, assentando rapidamente os tijolos na boca do túmulo, nós já meio que nos esquecemos do querido defunto.

14. Linguagens alternativas

Não conseguia expressar seus sentimentos, mas todo sábado, no jogo com os amigos, fazia um gol e se pacificava consigo mesmo.

15. Pacotes promocionais

Queríamos que fosse um solar imemorial, mas a vida é um hotel de beira de estrada, com diárias que acabam ao meio-dia – e nem sempre se consegue mais uma hora de cortesia.

16. Anotações de trabalho

Quando estou participando de debates como ouvinte, eu que não sei desenhar, embora sempre tente, acabo me ocupando com a escrita em cascata de meu nome. Isso vem da época da escola, quando riscávamos as carteiras com o nosso nome e o da amada. Deixamos de escrever o nome dela, mas ainda não nos livramos do fascínio de nós mesmos, que só desaparecerá com a nossa morte, amém.

17. Entretenimento

Os recursos tecnológicos em palestras mudam o centro da atenção. Acompanhamos os slides e nos esquecemos das ideias que estão sendo apresentadas, principalmente porque elas são muito ralas. Guiamo-nos por ícones vazios.

18. Multimídia

Colocamos nossa confiança nos recursos tecnológicos, que devem recordar por nós, dizendo o que queremos dizer. Com isso, nós nos tornamos meros coadjuvantes, incapazes de cultivar a memória pessoal.

19. Muitos gigas de memória

Ao invés de olhar profundamente as coisas e as pessoas, impregnando-se delas, tiramos fotos e mais fotos. As câmeras fotográficas digitais ajudam a promover um esquecimento documentado.

20. Aceitamos devoluções

A literatura nos devolve a nós mesmos.