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Decisões judiciais recentes devolvem criminosos às ruas e comprometem segurança pública
Cada vez mais comum no Judiciário brasileiro, “garantismo penal” corrói o sistema de persecução criminal e compromete a segurança pública como um todo| Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

No dia 13 de março, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) decidiu reformar uma sentença na qual um homem havia sido condenado por, dentre outros crimes, desobediência à ordem de autoridade policial por ter empreendido fuga da polícia durante 20 minutos em um carro roubado em alta velocidade.

Durante esse tempo, o criminoso – que é reincidente e já havia sido condenado anteriormente por roubo, extorsão e resistência – colocou várias pessoas em risco e colidiu com outros veículos. Até mesmo um helicóptero da Polícia Militar foi acionado para a ocorrência. Ao final, o rapaz tentou fugir a pé e chegou a pegar uma criança desconhecida no colo na tentativa de despistar os policiais.

Apesar das circunstâncias, três desembargadores do Judiciário paulista decidiram absolver o réu do crime de desobediência sob a alegação de que fuga de abordagem policial configurou um “exercício da autodefesa”. Os magistrados ainda destacaram que os 20 minutos despendidos na fuga foram apenas um “reflexo instintivo de preservar a liberdade”, e não propriamente “vontade de desobediência à ordem legal”.

Em outra decisão proferida três dias depois, o TJ-SP mandou soltar um homem preso sob a acusação de acessar os sistemas da Polícia Militar e do Detecta, programa de monitoramento e inteligência do Governo de São Paulo, a fim de repassar informações privilegiadas para o Primeiro Comando da Capital (PCC).

Na casa do rapaz, preso em outubro de 2022, a polícia encontrou um computador logado na intranet da Polícia Militar do estado. Segundo o Ministério Público, que apresentou a denúncia, o homem acessava o sistema havia quase dois anos e vendia as informações sigilosas à facção criminosa. “Em especial, a invasão dos sistemas da Polícia Militar visava à prática de roubos, viabilizando fugas e acompanhamento da localização de viaturas policiais”, menciona a denúncia. Na época da prisão, a juíza plantonista do TJSP informou que o rapaz “confessou com detalhes a prática criminosa” ao converter o flagrante em prisão preventiva.

Apesar disso, no dia 16 de março, a juíza do processo entendeu que não havia provas suficientes para enquadrá-lo por associação criminosa e decidiu rejeitar a denúncia do Ministério Público. A prisão foi revogada, e o rapaz foi solto.

Decisões como essas, fundamentadas no chamado “garantismo penal” – teoria que, ao buscar controlar excessivamente o poder de punir do Estado, cria um ambiente propício à reincidência criminal –, têm sido uma realidade cada vez mais comum no Judiciário brasileiro.

Na prática, a fragilização do sistema de persecução criminal em curso por atores do poder Judiciário tem feito com que o ditado “a polícia prende, a Justiça solta” faça cada vez mais sentido. Segundo fontes ouvidas pela reportagem, os resultados de decisões garantistas aplicadas em série são a devolução massiva de criminosos às ruas sob argumentos frágeis; o aumento da reincidência criminal; e a desmotivação de policiais, reduzindo a atuação proativa das forças de segurança.

Em outras palavras, a criminalidade aumenta ao passo que o combate ao crime enfraquece, criando um cenário bastante desfavorável à segurança pública. “Talvez o efeito mais devastador dessas decisões seja a mensagem que elas passam. É como se no Brasil a atividade criminosa fosse um mal menor, uma atividade que, apesar de ilegal, de certa forma se justifica pela fraca reação do Estado”, explica Luiz Fernando Ramos Aguiar, especialista em segurança pública e major da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF).

“A consequência é que criminosos se tornam cada vez mais ousados e violentos. Apostam que mesmo que seus atos sejam extremamente cruéis ou repulsivos, funcionam já que não existe uma punição que seja suficiente para inibir as vantagens decorrentes da atividade ilegal”, destaca.

Bandeira do governo Lula, garantismo penal é abraçado pela alta cúpula do Judiciário

Em maio de 2022, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a chamada busca pessoal a suspeitos – prática popularmente conhecida como “revista”, “enquadro”, “geral”, entre outros – feita por agentes de segurança é ilegal caso seja realizada sob a justificativa de atitude suspeita ou mesmo a partir de denúncias anônimas. A alegação dos ministros foi de que a medida combateria o "racismo estrutural". Como mostrado pela Gazeta do Povo, especialistas em segurança pública apontam riscos diversos como consequência da decisão do tribunal.

Na decisão, os ministros anularam a condenação de um homem detido pela polícia com 72 porções de cocaína, 50 de maconha e uma balança digital em sua mochila. O STJ apontou que a abordagem foi irregular porque os policiais não descreveram precisamente o que havia motivado a suspeita.

Como resultado, a medida tem motivado a anulação de diversas provas – e, consequentemente, de condenações – nos tribunais do país. Em fevereiro, o mesmo STJ concedeu liberdade a um homem que mantinha 66 quilos de maconha em sua residência. A alegação dos ministros foi de que a prisão era ilegal, já que “a entrada dos policiais no domicílio do homem dependia de validação e regularidade em razões justas e fundamentadas”.

A bandeira do garantismo penal também é erguida pela maior parte dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), o que, na prática, significa uma interpretação da Constituição de forma mais favorável aos réus. No fim de março, ao anunciar a antecipação de sua aposentadoria, o ministro Ricardo Lewandowski destacou que em seus 33 anos de magistratura, incluindo o período como desembargador, priorizou os direitos fundamentais dos acusados. “A minha judicatura, desde quando eu entrei no Tribunal de Alçada Criminal, em 1990, sempre se pautou por essa visão, uma visão garantista, uma visão que prestigia os direitos fundamentais", declarou.

Uma das decisões da Corte que ganhou ampla repercussão foi a soltura, em 2020, de um dos principais líderes do PCC, conhecido como “André do Rap” – condenado a 25 anos de prisão – por meio de um habeas corpus concedido pelo ex-ministro Marco Aurélio Mello. Diante de uma forte onda de críticas à Corte, a decisão foi revogada pelo ministro Luiz Fux, na época presidente do STF, e referendada pelo plenário. No entanto, a essa altura o criminoso já havia sido solto. Passados dois anos e meio da decisão do Supremo, o criminoso segue foragido e é procurado até pela Interpol.

No poder Executivo, o presidente Lula (PT) também é um ferrenho defensor do garantismo e coleciona declarações polêmicas sobre o combate à criminalidade que foram bastante exploradas por adversários durante a campanha eleitoral do ano passado.

Ao discursar no mês passado durante o lançamento do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), Lula fez declarações críticas às forças policiais e com pedidos de maior tolerância da Justiça com criminosos presos. Ao falar sobre o encarceramento de jovens, o petista chegou a dizer que infratores frequentemente são inocentes e “vítimas de um delito”.

Para especialistas, garantismo exacerbado multiplica violência e criminalidade

Na avaliação de Eduardo Matos de Alencar, doutor em sociologia e autor do livro “De quem é o Comando? O desafio de governar uma prisão no Brasil”, decisões judiciais excessivamente garantistas afetam diretamente o dia a dia da população, além de prejudicar a atividade policial e a gestão de segurança pública como um todo.

“São decisões que vão gerando uma ambiência institucional de condescendência com o crime que é tão precária para a segurança pública que já passou do ponto do garantismo. Acho que já é fruto de um ativismo judicial irresponsável por parte de ministros e juízes que não estão com ‘a pele em jogo’, que não vão pagar o preço de suas decisões”, declara.

Para Alencar, o fato de uma eventual responsabilização por decisões judiciais ser muito rara permite que magistrados tenham ampla liberdade para seguir com medidas questionáveis. “No Brasil, se um gestor público quiser ser garantista demais e amarrar a mão da polícia, isso terá um impacto direto sobre a quantidade de crimes e ele pagará isso eleitoralmente. Mas um juiz não. Então há um espaço para que ele aplique as teorias acadêmicas mais diversas numa realidade prática de segurança pública que ele pouco conhece”, aponta.

Ramos Aguiar, por outro lado, enfatiza os efeitos práticos do garantismo penal na forma como criminosos encaram o sistema de persecução penal, o que favorece a sensação de impunidade e, consequentemente, a reincidência criminal. “Mesmo sendo preso em flagrante, dificilmente um criminoso fica preso. O mais comum é que esteja de volta às ruas poucas horas depois em decorrência das audiências de custódia. Mesmo se for condenado, ele passa um período muito pequeno de sua pena realmente preso. A consequência disso é que gera um forte sentimento de impunidade, de que o crime compensa, o que leva o criminoso à reincidência”, explica.

“Na experiência do trabalho nas ruas, notamos que os crimes são cometidos de forma geral por reincidentes, pessoas com diversas passagens pela polícia e/ou condenações. Se essas pessoas estivessem presas, esses crimes não seriam cometidos”, reforça o major da PMDF.

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