
A guerra ao tráfico no Rio de Janeiro ainda produz eco no inconsciente dos brasileiros. Dez dias após a tomada do Complexo do Alemão, as imagens de dezenas de bandidos fugindo armados prestaram força a uma sensação de insegurança já não mais restrita aos cariocas. A fuga em massa, transmitida à exaustão pelas redes de televisão, tende a alastrar o medo diante da incômoda pergunta: aonde esses traficantes vão instalar seu novo estado paralelo? Decerto não vão abrir mão de um negócio em que ganharam importância, um mercado transnacional que brota das folhas de coca nas encostas da Cordilheira dos Andes e está cada vez mais global e devastador.
O tráfico de armas assegura o poder do crime organizado, mas é o mercado das drogas, em especial a cocaína, que o financia e sustenta. Os traficantes do Rio dominam esses dois negócios. O representante do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (Unodc) para o Brasil e o Cone Sul, Bo Mathiasen, acredita que eles vão ficar no Rio mesmo. Marginalizados e sem opção, tentarão se manter num mercado que já conhecem. Mathiasen lembra que não há no país uma cidade grande que não tenha sua própria estrutura montada para o comércio de drogas, e os cariocas não estariam dispostos a um confronto para disputar território.
Entretanto, nem todos compartilham dessa convicção. Diante de um perigo real devido à dispersão de um número estimado de 500 traficantes, Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo e até o longínquo Ceará reforçaram o policiamento das suas estradas para evitar a possível entrada dos líderes dessas facções criminosas. O Paraná, em particular, não só precisa redobrar a atenção nas divisas com São Paulo e Mato Grosso do Sul, mas também na fronteira com o Paraguai, principal ponto de entrada de drogas e armas para o crime organizado nas regiões Sul e Sudeste do país. Eles são muitos e, em tese, não há território livre de seus avanços.
Pela dinâmica desse comércio e as características desse mercado, os traficantes cariocas tendem a encontrar facilidades para se estabelecer em outro lugar. Segundo observações do Unodc, quando submetidos à pressão do controle estatal os grupos criminais desenvolvem uma estrutura de células semelhantes às dos grupos terroristas, com pequenas redes que levam a cabo as tarefas antes realizadas por estruturas mais rígidas. Impulsionadas pela força do negócio, essas células sempre existiram no tráfico internacional, ainda que fossem menos visíveis. Assim, os próprios grupos se tornaram menos importantes do que os mercados em que eles atuam.
Divisão por células
As conclusões do Unodc levam a constatar que a delinquência organizada parece não ser tanto um apanhado de pessoas que participam em diversas atividades ilícitas, mas antes um conjunto de atividades ilícitas em que alguns grupos participam. Quando parte de determinado grupo é presa, as atividades continuam porque o mercado ilícito e os incentivos que gera se mantêm. Seria quase como falar de um organismo vivo, capaz de repor as células mortas. Um organismo que se adapta ao meio para sobreviver e se expandir.
A proliferação do narcotráfico resulta das vitórias parciais de uma guerra que o empurra para outros lugares, avalia o professor Bruce Bagley, doutor em Ciências Políticas pela Universidade da Califórnia e pesquisador do tráfico de drogas na América Latina. O exemplo mais clássico, aponta ele, é a guerra inócua liderada pelos Estados Unidos há três décadas. O mercado das drogas ilícitas se tornou um negócio global e lucrativo, e no rastro das tentativas de combatê-lo surgiu o que Bagley chama de "efeito cucaracha". Tal como as baratas acuadas pela luz acesa na cozinha, os traficantes vão buscar outros pontos na penumbra, os vácuos do Estado.
Eles vão tentar restaurar seu establishment amparados nas relações já consolidadas com as redes mundiais de distribuição. Raros são os negócios tão globais como o das drogas ilícitas. O narcotráfico é o ramo mais lucrativo do crime organizado e, dentro dele, a cocaína gera os maiores ganhos. O Unodc calcula que a cocaína e seus derivados movimentem US$ 88 bilhões por ano no mundo. No Rio, a força desse negócio ajudou os narcos locais e os chefes do crime organizado, que não raro são as mesmas pessoas, a fundar estados paralelos nos morros, comprando políticos e policiais, matando quem não se deixa comprar ou intimidar.
Tentáculos enraizados
Eles agora devem transferir seus negócios para outros locais, repetindo o "efeito cucaracha" previsto por Bagley a 30 jornalistas latino-americanos na Universidade do Texas, em evento realizado em setembro pelo Knight Center for Journalism in the Américas e pela Open Society Foundations. O efeito se globalizou de tal forma que são raros os países livres do problema. O crime organizado estendeu seus tentáculos de forma tão profunda na sociedade civil e entre os militares que, em escala maior do que a do Rio, estão pondo em perigo os princípios fundamentais da democracia no México e em países da América Central.
A cocaína é o catalisador desse efeito global, isso porque seu comércio é uma das atividades mais dinâmicas e rentáveis do mundo. Dos US$ 88 bilhões que esse mercado movimenta por ano (os cálculos oscilam de US$ 80 bilhões a US$ 100 bilhões), US$ 37 bilhões correspondem aos Estados Unidos, o maior consumidor mundial, seguido da Europa, com US$ 34 bilhões. A alta do consumo faz parte do processo de globalização da cocaína, narcótico surgido como droga recreativa nos Estados Unidos nos anos 80 e 90 e que hoje tem mercado na Europa, Ásia, Oceania, África e nas três Américas.
Entre os traficantes, a cocaína leva vantagem sobre a maconha devido à popularização e à rentabilidade. Isso explica a pouca quantidade de cocaína apreendida no Complexo do Alemão, em comparação à maconha. Na fuga, os bandidos levaram a mais rentável e fácil de carregar. Isso se reflete também em nível global. As rotas do tráfico se diversificam conforme as necessidades, sempre a partir do mesmo ponto: os Andes. A região, única fabricante da droga, não tem nenhum outro produto que chegue tão longe nem com tanto êxito.
Colômbia, Bolívia e Peru produzem na selva da Amazônia 865 mil toneladas de cocaína por ano. Um terço destina-se aos 5,3 milhões de usuários dos Estados Unidos, outro terço para os 4,1 milhões da Europa e o terço restante vai pelo resto do Globo. Desde o lendário Pablo Escobar, morto em 1993, os cartéis têm se mostrado eficientes nas infiltrações em governos e instituições na busca por novos mercados. No caminho, deixam caos, morte, violência, corrupção, dor, distorção econômica, degradação moral.
No fim dos anos 80 e início dos 90, a guerra ao tráfico concentrou-se na Colômbia, e essa pressão levou à criação de novas rotas e estratégias. Há três anos a guerra ao tráfico se deslocou para o México, levando os narcos locais a estender suas redes para os países vizinhos, repetindo o "efeito cucaracha". A violência já se instalou na América Central. Na busca por novas rotas e mercados, os cartéis também fizeram da América do Sul um grande corredor para escoar suas cargas à Europa. Agora voltam os olhos para a África.




