1.A extrema relevância do tema
O sedutor e generoso tema da situação jurídica da pessoa pobre no contexto da justiça criminal exige algumas observações preliminares. A primeira delas é sobre os conceitos sociológico e jurídico de pobreza. Quanto ao primeiro, JOHNSON esclarece que tal situação, em sentido geral, é “uma situação na qual as pessoas carecem daquilo que têm necessidade para viver. Os limites de ‘necessidade para viver’, no entanto, são matéria de definição” [1]. Percebe-se, desde logo, que este é um enunciado dependente de complementação. E, relativamente ao segundo, HELENA DINIZ nos diz que o vocábulo tem acepções variadas segundo o ramo jurídico específico: civil, processual e canônico [2]. No plano penal, a pobreza é causa de dispensa da cobrança da multa, pelo desconto no vencimento ou salário do apenado quando tal abatimento afetar os “recursos indispensáveis ao sustento do condenado e de sua família” (CP, art.50, § 2º). Relativamente ao processo penal, a obrigação de pagar fiança será substituída por medida cautelar diversa da prisão (CPP, art. 325, § 1º, I, c/c o art. 350).
2.A suposta proteção contra a pobreza
A Constituição Federal promete, entre os objetivos fundamentais da República, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”, bem como “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, III e IV). É certo que iniciativas e projetos positivos do governo federal, como o programa “Minha casa, minha vida”, entre outros, revelam a melhoria de condições humanas e sociais de contingentes das pessoas pobres. Mas, em relação aos suspeitos, indiciados e réus pobres o sistema legal contém somente proclamações otimistas. Há um descompasso flagrante entre as declarações de direitos e garantias constantes da Carta Política e da legislação ordinária e o estado das prisões e o tratamento dos presos. Especialmente, dos presos pobres.
3.Os direitos e as garantias fundamentais (I)
Há um princípio, de tempos imemoriais, de que toda pessoa acusada de um delito tem o correspondente direito à defesa. Em textos clássicos dos direitos fundamentais, essa garantia está ligada a outros princípios: o devido processo legal e a presunção de inocência. Na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), que consagrou o movimento revolucionário francês da República contra a Monarquia, os arts. 7º e 9º, dispõem: “Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela lei e de acordo com as formas por estas prescritas (...)” ââ “Todo o acusado se presume inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor não necessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei”. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos (Paris, 1948), que subsidiou a Convenção de Roma (1950) e declarações latino-americanas, está posto: “Todo homem tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele” (art. X) ââ “Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa” (art. XI, nº1).
4.Os direitos e as garantias fundamentais (II)
Os direitos e as garantias fundamentais que a Constituição brasileira declara em favor de todos os acusados são, lamentavelmente, descurados em relação aos pobres nos procedimentos rotineiros da investigação policial, da instrução judicial e da execução da pena. Seguem alguns mandatos de proteção do art. 5º: “– é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral (XLIX); – às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação (L); – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (LIV); – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (LV); – são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos (LVI); – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”(LVII); – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo (...) (LXI); – a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada (LXII); – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado (LXIII); – o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial (LXIV); – a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária (LXV); – ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança (LXVI); – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (LXXIV); – o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença (LXXV) – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”(LXXVIII).
5.Direitos e garantias legais
A Lei nº 11.900/2009, modificativa de dispositivos do Código de Processo Penal, estabelece em favor dos acusados em geral e, em especial, dos acusados pobres, os seguintes direitos e garantias: a) presença do defensor, constituído ou nomeado, no ato do interrogatório em liberdade ou na prisão, bem como a publicidade do ato (art. 185, caput e § 1º); b) antes do interrogatório, por vídeo conferência [3], o preso poderá acompanhar, pelo mesmo sistema tecnológico, a realização de todos os atos da audiência única de instrução e julgamento (art. 185, § 4º); c) em qualquer modalidade de interrogatório, o juiz garantirá ao réu o direito de entrevista prévia e reservada com o seu defensor. E, quando realizado por videoconferência, será também garantido o acesso a canais telefônicos reservados para a comunicação entre o defensor que esteja no presídio e o advogado presente na sala de audiência do fórum, e entre este e o preso (art. 185, § 5º); d) a sala reservada no estabelecimento prisional para a realização de atos processuais por sistema de videoconferência será fiscalizada pelos corregedores e pelo juiz de cada causa, como também pelo Ministério Público e pela Ordem dos Advogados do Brasil (art. 185, § 6º); e) os direitos e as garantias previstos nos §§ 2º, 3º, 4º e 5º do art. 185 devem ser observados, no que couber, para a realização de outros atos processuais que dependam da presença da pessoa presa, como acareação, reconhecimento de pessoas e coisas e inquirição de testemunhas ou tomada de declarações do ofendido (art. 185, § 8º); f) o direito constitucional de permanecer calado não importará confissão e nem poderá ser interpretado em prejuízo da defesa (art. 186 e parág. ún.); g) o interrogatório do acusado constitui o último ato da audiência de instrução e julgamento (art. 400), ao contrário do ancién regime, quando a palavra do denunciado ou querelado era colhida no início da instrução judicial; h) “nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor” (CPP, art. art. 261); i) “a defesa técnica, quando realizada por defensor público ou dativo, será sempre exercida através de manifestação fundamentada” (CPP, art. 261, parág. ún.).
São disposições há muito tempo reivindicadas em eventos acadêmicos, nas tribunas de defesa, em propostas de reforma e que assumem, agora, relevantes garantias para os acusados em geral e, em particular, dos réus presos. É elementar que a violação de qualquer dos comandos acima referidos acarretará a nulidade do ato praticado caracterizando ofensa ao princípio constitucional do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV). A nulidade é absoluta e o prejuízo para a defesa é presumido.
6.A Defensoria Pública
Tornou-se conhecida, entre os profissionais da advocacia no fórum criminal, a frase “quem garante as garantias?”, cuja responsabilidade, em princípio, é tanto do juiz, como do agente do Ministério Público e do defensor. Mas o órgão que tem o maior dever institucional e humano de proteger os pobres é a Defensoria Pública. Inovando em relação a todas as Cartas Políticas anteriores, a Constituição Federal de 1988 criou essa “instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV” (art. 134). O editorial de O Estado de São Paulo, de 17 de abril de 2014, revela o saldo positivo da Defensoria Pública da União com a publicação do “mais completo relatório sobre sua instalação, há quase vinte anos. Atuando como uma instituição autônoma nos planos funcional e administrativo, a exemplo do Ministério Público, a Defensoria foi instituída pela Constituição de 88 com o objetivo de democratizar o acesso aos tribunais, defender as liberdades públicas e salvaguardar direitos individuais e coletivos de cidadãos carentes, ajudando a melhorar as condições de desenvolvimento econômico e social do País” [4].
Mas, apesar da excelente estatística de bons resultados, o artigo adverte que, tanto em relação à União como em relação às unidades federativas, há necessidade de um maior número de advogados para que o acesso à jurisdição se mostre amplamente satisfatório.
7.O transporte das pessoas presas
O terceiro fundamento do Estado Democrático de Direito é a dignidade da pessoa humana, jurada no primeiro artigo da Constituição Federal. Há um imenso número de presos e condenados pobres que sofrem as agruras da prisão em escala muito maior que outros presidiários que contam com algum recurso financeiro proporcionado por familiares. E são fisicamente maltratados quando transportados para as delegacias policiais ou varas criminais. Vem muito a propósito o artigo de RENATA ALMEIDA DA COSTA [5] que merece transcrição de alguns trechos. Após comentar a supressão da obrigatoriedade do uso de algemas, a autora nos diz que
“poucos no país questionam ou se insurgem contra uma ação tão ou muito mais grave, mais violenta e mais ilegal: a condução de pessoas presas (condenadas ou não, mas também não importa) no porta-malas dos veículos estatais. Algemados, jogados de lado, sem assento, sem cinto de segurança, são conduzidos, espetacularmente diante dos olhos públicos, famosos ou anônimos. O que mais estarrece, para além do simbólico da feitura da prisão (naquilo que Jacinto Coutinho refere não bastar o uso da força, ser preciso o escárnio para o gozo da massa) e de todos os seus efeitos estigmatizantes, é a violação explícita realizada pelo Estado de seus próprios princípios, insculpidos na Constituição Federal e no próprio Código de Trânsito brasileiro. No documento de 1997, o Estado se preocupou em estabelecer os objetivos básicos do Sistema Nacional do Trânsito. Ali, no artigo 6º, está dito que as diretrizes da Política Nacional do Trânsito devem ter em vista a segurança, a fluidez, o conforto, a defesa ambiental e a educação das atividades para o trânsito. E, antes mesmo de ser objetivo básico, a segurança é apontada como disposição preliminar. O parágrafo 2º do artigo 1º assim determina: O trânsito, em condições seguras é um direito de todos (…). Se é assim, o emprego de viaturas para transporte de pessoas custodiadas pelo Estado sem a observância desse fundamento significa o quê? A expressão “todos” foi mal empregada? Ou será que, pelos costumes e pelos sentimentos de vingança outorgamos ao Estado o direito de descumprir as suas normas, ou de relativizá-las dependendo de quem é o seu destinatário? Será que o Estado abandonou as máximas latinas, sinal de erudição do ordenamento jurídico racional, para assumir uma máxima popular simplória (“Faça o que eu digo, não faça o que eu faço!”)? A despeito da vigência da Constituição Federal (local em que princípios como dignidade da pessoa humana e princípio da inocência, e os direitos à vida e à integridade física ganharam status de imutabilidade e de garantia de um contra a violência de todos), as viaturas ao estilo “camburão” seguiram sendo utilizadas pelos órgãos da segurança pública. Possivelmente alicerçado nas situações regulamentadas pelo CONTRAN, o descumprimento do artigo 65 do CTB (É obrigatório o uso de cinto de segurança para condutor e passageiros em todas as vias do território nacional) adquiriu aparência de legalidade. (...) Por outro lado, é risível (não fosse trágico) que a lei federal brasileira (de número 8.653/93) destinada a regulamentar o transporte de presos no Brasil (e que, jocosamente, dá outras providências), tenha apenas quatro dispositivos. O primeiro afirma que “É proibido o transporte de presos em compartimento de proporções reduzidas, com ventilação deficiente ou ausência de luminosidade”. O segundo foi vetado. O terceiro determinou a entrada em vigor na data de sua publicação. O quarto revogou as disposições em contrário. O riso se torna uma gargalhada estupefata porque a malfadada norma específica ainda está em vigor. Foi publicada após a Constituição Federal e não se adequou àquela Carta de Princípios. É como se proporções medianas, com furos na lataria e vidros que deixem passar a luz (e a imagem de quem está dentro, muito importante para o escárnio) fossem suficientes para assegurar a dignidade e a segurança da pessoa transportada. Ao mesmo tempo, o Código de Trânsito Brasileiro não se preocupou em disciplinar a matéria. Ao contrário. Estabeleceu uma série de limitações à condução dos veículos automotores, previu outra série de sanções (especialmente as de caráter pecuniário destinatárias ao particular) e delegou ao CONTRAN a responsabilidade de dizer o que ali não foi dito. Esse, a seu turno, seguiu estabelecendo uma série de outros requisitos de proteção aos ocupantes dos veículos. Mas nenhum vedou, explicitamente, o transporte de seres humanos nos porta-malas dos veículos oficiais.”
8.Advocacia e solidariedade humana
O Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil declara, entre as suas regras fundamentais: “O Advogado, indispensável à administração da Justiça, é defensor do Estado Democrático de Direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social, subordinando a atividade do seu Ministério Privado à elevada função pública que exerce” (art. 2º). Essa relevante afirmação de princípio contém, implicitamente, o dever de solidariedade humana como sentimento que anima um dos fundamentos da República, ou seja, a cidadania.
Na defesa de direitos e interesses que lhe são confiados, esse profissional deve exercer o seu ministério com habilitação técnica e a sensibilidade para confortar aqueles que o procuram. Independentemente da natureza do problema exposto, o cliente é um ser humano que sofre, em maior ou menor intensidade, a inquietação própria dos desafios de sua vida privada ou pública. O gabinete de trabalho é, muitas vezes, um confessionário que obriga o ouvinte a guardar o segredo e atenuar, quando não eliminar, a ansiedade e não raro a angústia ou depressão. O causídico é, nesses momentos, conselheiro e amigo.
O dever de ouvir é essencial na relação entre o profissional e o cliente. Muitas vezes, a informação prestada ou o documento exibido podem ser dispensáveis para a defesa da causa. Mas é necessário avaliar com prudência qualquer contribuição ofertada, porque não são raras as decisões judiciais que surpreendem os prognósticos mais acreditáveis.
Prestar solidariedade humana é uma das qualidades indispensáveis à boa advocacia. E lembra os trechos do poema de Francisco Otaviano (1825-1889), que, além de Político e Jornalista, foi, também, Advogado: “Quem não sentiu o frio da desgraça, / Quem passou pela vida e não sofreu; / Foi espectro de homem, não foi homem, / Só passou pela vida, não viveu”.
[1] JOHNSON, Allan G. Dicionário de Sociologia, trad. De Ruy Jungmann, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 176.
[2] HELENA DINIZ, Maria. Dicionário jurídico, São Paulo: Saraiva, 1998, vol. 3 (J-P), p. 615.
[3] O interrogatório de réu preso pelo sistema de videoconferência é excepcional e motivado (CPP, art. 185, § 2º).
[4] O Estado de São Paulo, “Notas e informações”, p. A3.
[5] Publicado originalmente na 21ª edição do jornal Estado de Direito e em http://tudovirahipotese.blogspot.com.br/2009/08/transporte-de-presos-e-quando-o-estado.html. Acesso em 26.10.2015.
*René Ariel Dotti: Advogado; Professor Titular Direito Penal; Vice-Presidente Honorário da AIDP; Comenda do Mérito Judiciário do Paraná; Medalha Mérito Legislativo da Câmara dos Deputados (2007); Corredator do projeto da nova Parte Geral do CP e da Lei de Execução Penal (Leis 7.209 7.210/84; Membro de comissões de Ref. do Sist. Penal criadas Ministério da Justiça (1979 a 2000); Diploma da OAB, Câmara dos Deputados e Comissão da Verdade (1964-1985) Secretário da Secretaria de Cultura do Paraná (1987-1991). Escreve quizenalmente para o Justiça & Direito.
** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.