• Carregando...
Máscara para proteção contra o coronavírus
| Foto: Pixabay

Bem disse Chesterton que quem não acredita em Deus acaba acreditando em qualquer bobagem. É bem verdade; afinal, está aí a dialética marxista que não o deixa mentir. Mas as besteiras em que acreditamos todos em geral são mais simples que o bestialógico do alemão. Tomando os três exemplos abaixo podemos ver uma delas em ação: 1. Numa tirinha do Garfield, o gato glutão engole duma vez só uma caixa de bombons dietéticos e comenta que com mais três ou quatro daquelas goela abaixo ele ficará um palito; 2. A mãe de adolescente – nisso continuando o trabalho já iniciado pela tevê e pela escola – compra-lhe uma cartela de camisinhas e a põe na carteira da pessoinha em construção, prestes a sair para uma noitada; 3. O trânsito flui rápido, e nas miríades de carros fechados, com ar-condicionado ligado, vemos que a maioria dos motoristas – como sempre, sozinhos no veículo – está de máscara.

O que têm a ver estas três situações, das quais a primeira é um exagero caricato duma realidade que encontramos por toda parte e as outras são comuns ao ponto de não chamar mais a atenção? Basicamente, a visão mágica, supersticiosa, que faz de um aspecto duma coisa toda a realidade, ignorando as condições em que aquilo é verdadeiro e tornando-a como que um breve ou amuleto, protegendo contra todas as consequências indesejadas por virtude de seus poderes mágicos. É a famosa “magia simpática”, presente culturalmente nas nossas “simpatias” (do grego para “sofrer junto”) em que uma representação ou pedaço faz as vezes da coisa toda, e um fio de cabelo da pessoa amada poderia em tese levá-la a querer voltar. As virtudes supostamente apotropaicas dos produtos dietéticos, camisinhas e máscaras, afinal, vão tão além da realidade que se torna evidente para quem tenha olhos para ver que não se trata mais do pensamento científico (leia-se baseado em experimentos controlados, testes de duplo-cego e todo o resto do arsenal da religião de Estado do século 20). É mágica, pura mágica, em que um efeitozinho real presente em determinadas circunstâncias torna-se um poder ilimitado que delas independe.

Afinal, qual é a diferença entre um bombom dietético e o real? Seria, em tese, que aquele tem menos carboidratos e, por isso, comido em pequena quantidade terá menos potencial de tornar-se em gordura no corpo. Mas quem consome os produtos dietéticos em geral os percebe de maneira radicalmente diferente, vendo-os como um meio mágico de conciliar glutonaria e emagrecimento. Ninguém acha que comer quatro caixas de bombons dietéticos o tornará “um palito”, mas muita gente acha que não engordará ao fazê-lo, sem jamais cogitar não comer quatro caixas do que seja. E, claro, seguindo depois a abertura da glutonaria com um litro de refrigerante dietético para ajudar a descer, e mais e mais balinhas, doces e quetais ao longo do dia.

A visão mágica faz de um aspecto duma coisa toda a realidade, ignorando as condições em que aquilo é verdadeiro e tornando-a como que um breve ou amuleto

O “dietético” é lido como “mágico”, como uma garantia de glutonaria sem consequências. E azar da famosa “reeducação alimentar”, que no mais das vezes deveria ser simplesmente a percepção de que comemos para viver, não vivemos para comer, e que quem come além do necessário há de estar afogando em mastigadas alguma dor interna que, ela, sim, deveria ser objeto de tratamento. É o mesmo, exatamente o mesmo, que vemos em quem bebe até cair – seja para esquecer, seja por já ter esquecido, mas jamais curado. O outro lado da moeda da bulimia e da anorexia, ou mesmo da disforia de gênero: uma tentativa de esconder-se, de uma certa maneira, de si mesmo e de suas dores.

O segundo caso, da mãe fornecedora de camisinhas, opera exatamente no mesmo mecanismo, na mesma largura de onda: a camisinha, que diminui em 30% a chance de gravidez, passa a ser percebida como um dos elementos (paralelamente ao consentimento) que faz de toda relação sexual uma espécie de brincadeira de roda saudável e totalmente desprovida de consequências. O fato de ela ter algum poder, e mesmo assim não absoluto, sobre apenas um dos dois fins naturais da relação sexual (a reprodução), é magicamente transformado numa proteção total contra tudo.

Ora, o outro fim natural da relação é a união do casal. E o sexo casual, o sexo que o adolescente espera conseguir ao longo da noitada para a qual sai “protegido” pelos poderes apotropaicos do tal “preservativo”, como se este de todo mal o preservasse, é uma das maneiras mais garantidas de suscitar emocionalmente uma união desde o início projetada para não se manter. Fórmula certa para sofrimento, diria eu. E assim o adolescente vai ter, ao longo da idade em que tudo mais dói, em que as emoções mais estão à flor da pele, o coração partido tantas vezes que será praticamente um milagre conseguir, mais tarde, entregar-se numa relação madura, que deveria ser duradoura. É receita certa para problemas psicológicos sérios no futuro.

Mas, como a camisinha é percebida como amuleto, nada disso passa pela cabeça da mãe, mesmo sendo ela pessoa mais madura que deveria ser capaz de perceber o óbvio. Os poderes mágicos da camisinha são tão fortemente cantados em verso e prosa que mesmo as muitas doenças sexualmente transmissíveis contra as quais sua proteção é exatamente nenhuma são varridas para baixo do tapete, ou “prevenidas” em paralelo. É o caso, por exemplo, do papilomavírus humano, transmitido pelo suor: para evitar que se perca a fé na camisinha, hoje em muitos lugares já se tornou obrigatório vacinar crianças pré-púberes contra este vírus. O fato de a vacina ter fortíssimos efeitos colaterais, em alguns casos chegando à esterilização permanente do vacinado, parece ser um custo pequeno para garantir a “segurança” biológica do sexo casual. Do mesmo modo, a combinação recomendada por quase todo “educador sexual” moderninho, em que à camisinha se une a pílula contraceptiva (também eivada de sérios perigos colaterais), tenta eliminar os 30% persistentes de “risco” de a relação sexual atingir um de seus fins precípuos.

Ora, ainda que possa haver alguma diminuição da probabilidade de alguma doença venérea ser transmitida numa relação, a suposta proteção jamais será absoluta: camisinhas foram feitas para segurar espermatozoides, muitíssimas vezes maiores que vírus e bactérias, e mesmo assim duas chances em três de funcionar não são exatamente causa ganha. Como, todavia, o que começou como contraceptivo hoje em dia se tornou um breve contra as consequências indesejadas do que foi feito para atingi-las. O prazer venéreo, que tem na natureza a mesma utilidade biológica que o do paladar (incentivar um ato necessário para a continuação da espécie, seja ele a reprodução ou a nutrição), passando a ser um fim em si e os fins naturais do ato sendo considerados malefícios, faz-se necessário proteger o amuleto da descrença.

Sexo casual com camisinha e glutonaria dietética, estes jeitos de atingir os meios sem alcançar os fins, passam a ser o paradigma. Assim, enquanto dum lado se tem a simples negação peremptória de que sexo casual pode levar a sérios problemas de relacionamento no futuro, do outro “escora-se” a função contraceptiva da camisinha com meios químicos. Mas o amuleto, claro, persiste inabalável. A camisinha, para seus adoradores, realmente é percebida como tendo o dom mágico de tornar casual o que tem por fim precípuo o aprofundamento duma união preexistente.

Vemos hoje uma apotropaização com bases políticas da máscara. Ela se tornou nada mais nada menos que um ídolo, adorado por seus seguidores e detestado por seus atacantes

Finalmente, a máscara cirúrgica é algo tremendamente útil. Ela impede que nossos perdigotos atinjam os outros, e numa sala com três ou quatro pessoas conversando (ou, pior, num ensaio de coral) a quantidade de invisíveis perdigotos voando pelos ares é assustadora em tempos de pandemia. Mas da máscara cirúrgica, ou da máscara médica N95, que dizem segurar até pensamento, passamos rapidamente para máscaras de chita, máscaras de malha vagabunda, máscaras de TNT e mesmo máscaras de tricô.

Já seria complicado, na medida em que os benefícios evidentes do uso de máscaras em locais fechados lotados de gente que se encontra pouco ou nunca já são tremendamente diminuídos por máscaras literalmente cheias de furinhos. Mas a coisa vai mais longe, e vemos hoje uma apotropaização com bases políticas da máscara. Ela se tornou nada mais nada menos que um ídolo, adorado por seus seguidores e detestado por seus atacantes. E assim a esquerda crê em seus poderes mágicos, enquanto a direita as vê como instrumentos satânicos de dominação da população, mas ninguém as usa de modo sensato. Tornou-se possível, tanto aqui quanto na matriz de nossos problemas políticos, as selvagens terras do Norte, discernir a posição política de alguém pelo exagero mágico com que lida com a máscara: enquanto os esquerdistas dirigem sozinhos de máscara, os direitistas orgulhosamente atiram perdigotos a granel e deglutem felizes os lançados por correligionários. A percepção científica da máscara já foi para o beleléu há tempos em ambos os lados; hoje ela é o ídolo adorado por uns e odiado por outros, quase sem meio-termo.

Isto, aliás, foi o que aconteceu com a famosa cloroquina, que ao transformar-se em bolsoquina foi praticamente proibida (para indignação dum meu médico, aliás). Dum lado o bolsoxamã (sem máscara, claro) levantava gloriosamente, como se fosse o Santíssimo Sacramento exposto à adoração dos fiéis, uma caixinha de cloroquina diante de um cacho de bolsominions igualmente desmascarados. Doutro a imprensa, adotando o discurso contrário, pintava a cloroquina como algo perigosíssimo, quando se trata de um remédio cujos (reais) efeitos colaterais são fartamente conhecidos pela medicina.

Tudo isto que enumerei acima, e muito mais, é magia. Pode-se até dizer que é uma magia que decolou de bases científicas como uma borboleta que magicamente (ou seria cientificamente?) deixa o casulo em que uma lagarta se enrolou. A versão moderna da tripa de carneiro com um nó na ponta usada por prostitutas egípcias milênios atrás tornou-se um meio mágico de negar ambos os fins naturais do sexo, quando na verdade apenas diminui a chance de ser atingido um deles. A máscara passou a ter o fantástico efeito mágico de tornar uns imunes à impossível transmissão do coronavírus através das janelas fechadas dum carro em movimento, enquanto faz de outros escravos hipoxiados duma seita pedófila hollywoodiana que mata criancinhas debaixo do Central Park novaiorquino para colher um elixir da vida eterna. Ou coisa parecida. Em todo caso, o fato é que as condições em que máscaras são cientificamente eficazes e seu uso faz pleno sentido já foram para o escanteio há tempos. E, finalmente, é possível fazer uma espécie de transação comercial com as divindades da pança (seria Buda uma delas?) e regar os dois X-Tudo do almoço com uma Coca diet, e tudo estará resolvido.

Mágica. Superstição. Idolatria. É o que se tem quando se deixa de acreditar em Deus, como citei no começo deste texto.

É curioso que coisa de 100 anos atrás, na sua obra magistral A Rebelião das Massas, o filósofo espanhol Ortega y Gasset previu muito disso, o que o levou a séria preocupação com o futuro da ciência. Se a verdade é dada pelo Ibope, como garantir que continue a haver pesquisas científicas em busca delas? Por quase um século houve resposta à indagação orteguiana: a Ciência (com “C” maiúsculo, mesmo) tornou-se religião de Estado mundo afora. Não nos esqueçamos que tanto o nazifascismo quanto o comunismo percebiam-se como maneiras “científicas” de ver o mundo, assim como o torpe e tacanho tecnocratismo positivista abraçado por nossos medíocres militares. As pesquisas continuaram a ser feitas, substituindo sempre “verdades” científicas anteriores por novas e, daí, gerando a técnica que permitiu que dos escombros da Ciência de Estado do século passado (a tecnocracia, seja ela comunista, nazifascista ou positivista), em cujo altar sacrificou-se não apenas a religião, mas também o próprio “fenômeno religioso” da ciência social. Agora, porém, na pós-modernidade, eis que ressurge a questão de Ortega y Gasset, ainda que de forma diferente da que ele colocou, como não poderia deixar de ser depois de quase século de ciência geradora de técnica sendo tratada como religião de Estado.

A esquerda crê nos poderes mágicos das máscaras, enquanto a direita as vê como instrumentos satânicos de dominação da população, mas ninguém as usa de modo sensato

A pós-modernidade, duma certa maneira, é para a Ciência uma espécie de repetição da revolta protestante de há cinco séculos. Os sumos-sacerdotes da Ciência moderna têm cada vez menos voz, na medida em que a Rebelião das Massas que Ortega y Gasset discerniu finalmente atingiu suas igrejas e seus tronos. Hoje, para cada pós-doutor que diz algo acerca do que dedicou a vida a estudar, surgem imediatamente dúzias de homens-massa que leram em diagonal algo na Wikipedia, ou mesmo ouviram na tevê, e consideram suas “opiniões” tão dignas de crédito e respeito quanto a do sacerdote do Culto à Ciência (nome de escolinhas positivistas mil Brasil afora, aliás).

Mesmo dentro dos templos deste culto, as universidades e institutos de pesquisa, a rebelião já foi além da presa fácil das Ciências Humanas, atingindo inúmeros outros campos. Não foram um nem dois climatologistas a denunciar a necessidade política de aderir a certas “verdades” para não perder a cátedra e a carreira, por exemplo. Isto, por sua vez, é ao mesmo tempo fruto e raiz do abraçamento pelas esquerdas mundiais da tese de estar em curso uma mudança climática que, ao contrário das inúmeras anteriores, seria antropogênica. Daí Biden e seus correligionários se dizerem “pró-Ciência” (mesmo apoiando absurdos ideológicos anticientíficos como a tal “fluidez de gênero” e seus corolários) e, no mesmo fôlego, denunciarem Trump e seus cupinchas como “anti-Ciência”. A questão passou a ser “o que é Ciência, afinal, cara pálida?”. Afinal, no tempo da “pós-verdade” política, por que não uma “pós-ciência”, em que o apotropismo, não mais a técnica, é o fim de toda ciência, e a política, não mais a experimentação pelo método científico, o penhor de sua veracidade?

Nesta pós-ciência, tudo passou a ser político. Nas universidades, mesmo longe das questões políticas mais espinhosas, tudo se politiza, repetindo em escala global o que ocorreu nas universidades soviéticas, de que a genética mendeliana foi expurgada (“cancelada”, diríamos hoje) em prol do bestialógico pseudocientífico de Trofim Lysenko. Afinal, este dizia o que o ditador queria ouvir, e defendia a possibilidade de construir o sonhado Novo Homem Socialista. Talvez isto possa ser posto na conta da “longa marcha através das instituições” pregada pelo povo da Escola de Frankfurt, ou talvez sua origem seja outra. Na verdade não interessa mais, na medida em que “tá dominado; tá tudo dominado”, nas imortais palavras do bardo lírico fluminense.

A Ciência experimental e isenta, aquela com “C” maiúsculo, praticamente acabou neste momento em que “isentão” é xingamento comum. Talvez ela tenha alguns cantos em que persista; a história da ida para uma universidade americana da grande neurologista brasileira Suzana Herculano-Houzel, enquanto nos entristece pela situação da pesquisa brasileira, nos ajuda a ter esperança na sobrevivência dalguma pesquisa séria, ainda que não numa “contrarreforma”, do método científico, cujo único problema real é ter-se revelado demasiadamente eficaz, possibilitando a criação da sociedade do desperdício, da cultura do lixão em que vivemos.

O grosso das universidades, todavia, já é território conquistado e fortificado pela pós-ciência, pela ciência (com “c” tremendamente minúsculo) politizada, em que até mesmo a cloroquina ou a antropogênese humana da mudança climática ora em curso têm “lado”. Nas Ciências Humanas, então, a coisa é muitíssimo mais feia. Reconhecer a existência da natureza humana, por exemplo, é caminho certo para se ver trabalhando numa lanchonete após ter sido “cancelado” academicamente. Amigos acadêmicos me dizem que só há alguma possibilidade de “heresia” aberta depois do fim do estágio probatório dum professor doutor concursado, fazendo com que áreas inteiras de estudo tenham sido na prática abandonadas pelas instituições.

A Ciência experimental e isenta, aquela com “C” maiúsculo, praticamente acabou neste momento em que “isentão” é xingamento comum

Enquanto isso, continua a mágica, continua a superstição, continua a idolatria. São tantos amuletos e breves em uso constante em nossa sociedade que qualquer enumeração seria forçosamente irrisoriamente parcial. Da CNH a altíssimas titulações acadêmicas que não garantem sequer que seu portador saiba ler e escrever; da “cura do câncer” pelo bicarbonato de sódio, limão, babosa ou (eca!) ingestão da própria urina à gigantesca indústria da fiscalização ou da multa; da substituição pela pornografia do “fazer amor” às kafkianas burocracias brasileiras, em que tudo é certificado e nada é certo...

Recoloca-se, então, nestoutro quadro, a pergunta de Ortega y Gasset: haverá futuro para a Ciência? Sinceramente, não sei responder. Para alguma com certeza há; costumo dizer que, se nos roubaram o nome “universidade”, faremos a mesma coisa sob outro nome, e é o que estamos tentando fazer aqui na Quinta São Tomás, associação de fiéis a que tenho a honra de pertencer. Do mesmo modo, os que dependem da técnica provavelmente bancarão alguma pesquisa, ainda que nem um pouco desinteressada, da filosofia natural que lhes dá coisas novas que os engenheiros possam pôr em prática. Isto, todavia, são pedacinhos, pontinhas aliás já perdidas num mar de hiperespecialização que pulverizou a Ciência e permitiu sua substituição pela pós-ciência que hoje nos assola. O pouco de futuro que podemos prever por estes dias não é nada alvissareiro.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]