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O soviético Nikita Kruschev (à esquerda) e o norte-americano John Kennedy (à direita) durante a Conferência de Viena, em 1961.
O soviético Nikita Kruschev (à esquerda) e o norte-americano John Kennedy (à direita) durante a Conferência de Viena, em 1961.| Foto: EFE

“Eu estava incumbido de encher os Estados Unidos de drogas.” (Mario Estevez Gonzalez, agente da inteligência cubana, 1981)

No começo dos anos 1990, a conceituada repórter Claire Sterling (correspondente internacional do Reader’s Digest, da New York Times Magazine, do Washington Post, do Financial Times, entre outros) preparava um livro sobre o surto de crime organizado na Europa Ocidental, na medida em que algumas de suas fronteiras eram redefinidas com o fim nominal do comunismo. Mas, ao se dar conta das forças incontroláveis liberadas naquele período de profundas mudanças, viu-se obrigada a abandonar o projeto, que então se lhe afigurou como obsoleto e ingênuo.

Jornalista com vasta experiência no tema, Sterling não demorou a notar que a natureza do crime organizado se transformara radicalmente com a queda da URSS, pondo fim a uma ordem mundial na qual, ainda amadores, os criminosos pareciam relativamente sob o controle das forças da lei e da ordem. O novo projeto da jornalista resultou no livro Thieve’s World: The Threat of the New Global Network of Organized Crime, publicado em 1993, e que explica muito do mundo contemporâneo. Nele, a autora afirma: “Quando caíram as velhas fronteiras geopolíticas, os grandes sindicatos do crime uniram forças, encerraram as disputas por território e declararam uma pax mafiosa. O mundo nunca havia visto um consórcio planetário do crime como o que surgiu ao fim da era comunista”.

Na Rússia pós-soviética, os grandes sindicatos do crime encontraram um porto seguro do tamanho da Europa Ocidental e da América somadas, no qual podiam driblar a polícia, se encontrar, planejar estratégias e dividir o mundo entre si

Essa unificação (e globalização) do crime organizado deu-se sob o comando da máfia russa, que teve um crescimento meteórico e espantoso, conquistando em cerca de dois ou três anos aquilo que suas consortes maiores e mais tradicionais – a máfia de Chicago, a máfia siciliana, os cartéis de droga colombianos, a Yakuza japonesa, as tríades chinesas etc. – haviam levado décadas para construir. Embora muitos desses grupos já houvessem se articulado antes, as oportunidades surgidas com o fim da URSS eram imensas e elevavam o mister mafioso a um outro patamar. Enquanto os governos ocidentais tendiam a ver a Rússia como um caso perdido, os sindicatos do crime enxergavam-na como um santuário privilegiado para delinquir.

Com efeito, abria-se agora um território tão vasto quanto ingovernável, que cobria metade do continente europeu e boa parte da Ásia. Durante o período soviético, a Rússia e seus satélites já dispunham de um mercado negro dinâmico (ver, sobre isso, o livro The Corrupt Society: The Secret World of Soviet Capitalism, de Konstantin Simis), um grande potencial para produzir e distribuir drogas, um gigantesco arsenal militar, recursos naturais em abundância, e uma fome insaciável por dólares de qualquer proveniência. Tinham, sobretudo, uma máfia em franca ascensão, ansiosa por parcerias criminosas e disposta a prestar um serviço exclusivo de lavagem de dinheiro (para se ter uma ideia, só no ano de 1992 foram lavados na Rússia US$ 20 bilhões, convertidos em matérias-primas ilegalmente exportadas, incluindo petróleo, madeira, titânio, césio, urânio, plutônio etc.).

Os grandes sindicatos do crime haviam, enfim, encontrado um porto seguro do tamanho da Europa Ocidental e da América somadas, no qual podiam driblar a polícia, se encontrar, planejar estratégias, estabelecer novas rotas do narcotráfico, administrar o dinheiro sujo, resolver disputas territoriais e dividir o mundo em várias zonas de atuação criminosa. A mudança fora tão súbita que os investigadores ocidentais não puderam acompanhá-la. “Pelo fato de a máfia siciliana continuar atuante no submundo do crime, muitos ainda acreditam que o centro planetário do poder criminal é a Itália” – escreve Sterling. “Mas, no outono de 1993, o líder da comissão parlamentar antimáfia da Itália deixou clara a mudança de endereço: ‘A capital mundial do crime organizado é a Rússia’.”

Mas só se pode compreender plenamente como a Rússia galgou essa posição quando complementamos a leitura do livro de Sterling com a de Red Cocaine: The Drugging of America and the West, obra de Joseph Douglass por mim mencionada no artigo anterior. Pois o que se conclui da leitura é que a máfia russa foi formada basicamente por egressos da antiga Nomenklatura soviética, e que essa nova internacional do crime surgida no início dos anos 1990 era, na verdade, um rebento da velha internacional socialista. O autor argumenta que a globalização do crime organizado, e particularmente do narcotráfico internacional, foi, em larga medida, fruto de uma campanha estratégica elaborada pelos soviéticos ainda nos anos 1950, e cujo objetivo era desestabilizar o “grande inimigo”: os EUA e o Ocidente como um todo.

A principal fonte de Douglass sobre a estratégia soviética de inundar de drogas o Ocidente capitalista é o general tcheco Jan Sejna, que desertou da Tchecoslováquia para os Estados Unidos em fevereiro de 1968, tornando-se um dos dissidentes soviéticos de mais alta patente. Sejna foi membro do Comitê Central do Partido Comunista da URSS, da Assembleia Nacional, da junta governante e de seu Politburo. Foi também primeiro-secretário do Partido no Ministério da Defesa e secretário do poderoso Conselho de Defesa, órgão máximo da cadeia de tomada de decisão em matéria de defesa, inteligência, política externa e economia. Na condição de um dos mais altos oficiais do Partido na tomada de decisão, o general Sejna reunia-se regularmente com os maiores oficiais soviéticos, tanto na Rússia quanto nos países-satélite, e esteve presente durante a concepção, planejamento e implementação das operações soviéticas de tráfico de drogas.

Nikita Kruschev teve a ideia de empregar sistematicamente as drogas para enfraquecer o inimigo, inserindo esse procedimento na estratégia de longo prazo na guerra contra “o capitalismo”

Segundo Sejna, a estratégia das drogas surgiu durante a Guerra da Coreia, quando chineses e norte-coreanos (ajudados também pelos soviéticos) utilizaram seus prisioneiros de guerra como cobaias de uma série de experimentos que visavam avaliar o efeito dos narcóticos na debilitação das capacidades do inimigo. Quando informado sobre o resultado de tais experiências, Nikita Kruschev teve a ideia de empregar sistematicamente as drogas para enfraquecer o inimigo, inserindo esse procedimento na estratégia de longo prazo na guerra contra “o capitalismo”. O sucessor de Stalin ordenou a criação de uma junta civil-militar soviético-tchecoslovaca para estudar em detalhes os possíveis efeitos nocivos tanto dos narcóticos em si mesmos quanto do tráfico de drogas. A conclusão foi de que o tráfico seria extremamente eficaz na debilitação social e cultural do inimigo, e que os alvos privilegiados deveriam ser os Estados Unidos, o Canadá, a França e a Alemanha Ocidental. Nas palavras de Douglass:

“O estudo foi aprovado pelo Conselho de Defesa soviético na virada dos anos de 1955 para 1956. A principal orientação do Conselho de Defesa na aprovação da ação foi direcionar os planejadores a acelerar o calendário de eventos, o que foi possível graças a uma prévia experiência operacional com narcóticos por parte do serviço de inteligência do Bloco Soviético (...) O plano foi formalmente aprovado quando os soviéticos decidiram começar a traficar narcóticos contra os chamados burgueses, especialmente contra os ‘capitalistas americanos’ – o ‘grande inimigo’. Além disso, o estudo apareceu na época mais propícia para os comunistas porque, simultaneamente, os soviéticos sob o comando de Kruschev estavam trabalhando duro para modernizar o movimento revolucionário mundial. Kruschev acreditava que o movimento estagnara sob Stalin, e buscava um rejuvenescimento que pudesse extrair vantagem das novas condições mundiais.”

A reformulação da estratégia revolucionária sugerida por Kruschev era ambiciosa, e devia ocorrer em várias frentes simultâneas. Dessas iniciativas faziam parte o treinamento e a modernização das lideranças do movimento revolucionário mundo afora, o fomento a uma rede internacional de terrorismo ocultada sob a fachada de “movimentos de libertação nacional” e, finalmente, a infiltração, mediante agentes especialmente treinados para a missão, em organizações criminosas e de narcotraficantes. Em relação ao narcotráfico, os soviéticos reuniram grupos de estudo para analisar o crime organizado, identificar as principais quadrilhas, desenvolver estratégias e táticas de infiltração, identificar potenciais informantes, e organizar novas franquias do crime. Tratava-se de uma operação de alto escalão, envolvendo os oficiais máximos da inteligência militar, contrainteligência, inteligência civil e o Departamento Internacional do Comitê Central do Partido Comunista, que, sob Kruschev, desempenhou papel fundamental nas operações de subversão e desestabilização do inimigo. Seguiremos daí no capítulo da semana que vem.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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