
Ouça este conteúdo
Atribuída ao jurista francês Georges Ripert (1880-1958), a frase que dá título a este artigo é clara: para serem eficazes e legítimas, leis e normas jurídicas devem ser compatíveis com os valores da sociedade que almejam regular. Quando o Direito se distancia da realidade, torna-se letra morta, e as instituições que o aplicam perdem o respeito da sociedade. E a realidade se vinga, demonstrando que leis descoladas da vida concreta têm valor apenas formal.
Idealmente, a Justiça deveria servir para reduzir conflitos e proteger direitos. Hoje, no Brasil, ela relativiza direitos e acirra conflitos. A tensão criada entre o país oficial e a realidade social cria um espaço no qual a lei é muitas vezes desrespeitada ou contornada — não por falta de legislação, mas por incapacidade do Estado de aplicá-la efetivamente ou pela opção de aplicá-la de forma seletiva. Quando isso acontece, pessoas comuns tendem a buscar alternativas informais ou mecanismos extralegais para garantir seus interesses.
Nesse contexto, o Direito deixa de ser regulador e se torna espectador impotente, enquanto a realidade impõe suas próprias regras. Isso é perigosíssimo. Quando a realidade se vinga, as consequências do descrédito do sistema jurídico e da perda de confiança da população nas instituições são imprevisíveis.
Alguns exemplos simples do Brasil de hoje dão razão à frase de Ripert:
Se as leis trabalhistas não refletem a realidade do mercado de trabalho, com suas novas formas de contratação e relações empregatícias, elas se tornam obsoletas e ineficazes, favorecendo a precarização e a exploração.
Se as leis ambientais não consideram a realidade das atividades econômicas e a complexidade dos ecossistemas, elas tendem a ser descumpridas ou burladas, levando à degradação ambiental.
Se as leis penais não correspondem aos valores e anseios da sociedade em relação à segurança e à Justiça, costumam gerar impunidade, descrédito do sistema judiciário e indignação do cidadão comum.
Durante períodos de autoritarismo, como na Alemanha nazista ou na União Soviética stalinista, normas jurídicas ignoravam direitos fundamentais e a realidade social, criando uma lacuna entre a lei e a vida concreta que resultou em graves crises de legitimidade.
O jurista Hans Kelsen defendia uma teoria pura do direito, na qual normas jurídicas deveriam ser analisadas de forma lógica e sistemática, sem considerar valores sociais ou consequências práticas. Desnecessário dizer que a aplicação estrita dessa tese levou a consequências catastróficas.
Gustav Radbruch, outro jurista alemão, observou em sua famosa fórmula: quando a lei se torna extremamente injusta, perde sua autoridade moral e deixa de ser legítima aos olhos da sociedade.
Aos olhos de muita gente, o Direito eleitoral se transformou em mera ferramenta de perseguição de adversários políticos
O caso brasileiro é exemplar. Nossa Constituição inclui um extenso catálogo de direitos fundamentais, sociais e ambientais. No papel, há garantias robustas de saúde, educação, moradia, segurança e justiça para todos. Na prática, uma parcela significativa da população não tem acesso efetivo a qualquer desses direitos: nossa realidade é marcada por desigualdade, violência, corrupção e informalidade endêmicas.
Há regras rigorosas sobre licitações, contratos públicos e fiscalização. Mas a realidade mostra desvios sistemáticos, superfaturamentos e enriquecimento ilícito de políticos e servidores.
A lei existe, mas sua efetividade é limitada por deficiências institucionais, morosidade judicial e impunidade generalizada. A consequência: a sociedade aprende que o cumprimento estrito da lei nem sempre compensa, o que alimenta um ciclo de desconfiança generalizada e legitima práticas informais ou ilícitas.
Direito à moradia? Piada. Dezenas de milhões de brasileiros vivem em favelas ou em ocupações irregulares, sem acesso aos serviços mais rudimentares. Moradores buscam alternativas próprias — construções improvisadas, ocupações de áreas públicas ou privadas, redes de solidariedade comunitária — criando um sistema paralelo de convivência que, basicamente, ignora o Direito formal. Também nesse caso, o Direito ignora a realidade, e a realidade responde ignorando o Direito.
Outro exemplo: a segurança pública. Nossa Constituição garante proteção à vida e à integridade física a todos os cidadãos. Na prática, imensas áreas urbanas são controladas pelo tráfico de drogas e/ou pela milícia; parece que hoje o Estado sequer tem coragem de entrar nessas áreas. Renova-se assim um ciclo infinito de violência e impunidade, com o crescimento das facções criminosas, dos homicídios em áreas urbanas e dos índices de reincidência.
Práticas informais de justiça, como execuções ou a “lei do silêncio”, ganham força. Essa é a realidade de muitos brasileiros. A sociedade, percebendo que o direito formal não responde às suas necessidades de proteção e segurança, recorre a mecanismos alternativos, ignorando o sistema jurídico oficial.
Já a realidade econômica, marcada pelo desemprego, informalidade e baixos salários, frequentemente ignora as proteções legais que supostamente deveriam garantir condições dignas de vida, prejudicando empresários e empregados.
Muitos trabalhadores são subcontratados sem direitos, pequenas empresas operam sem observar normas fiscais ou de segurança, enquanto a corrupção em licitações e contratos públicos mina a aplicação da lei.
Sobre política, seria prudente nem falar. Vou me limitar a dizer que o debate sobre a anistia e a inelegibilidade de Jair Bolsonaro, bem como a tentativa do sistema de consolidar uma terceira via, mostram como a realidade política frequentemente contorna ou pressiona as normas formais. Aos olhos de muita gente, o Direito eleitoral se transformou em mera ferramenta de perseguição de adversários políticos.
A consequência disso tudo é uma população cada vez mais cética, leis desacreditadas e uma democracia relativa que convive com regras distorcidas e nada isonômicas.




