O cardeal Victor Fernández durante a apresentação da declaração Dignitas infinita.| Foto: Daniel Cáceres/EFE
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Confesse aí: quando você fica sabendo que está para sair documento novo do Dicastério para a Doutrina da Fé, você fica como o apóstolo Natanael: “Pode, porventura, vir coisa boa da cabeça de Tucho Fernández?” Ao menos eu fico assim, especialmente depois de Fiducia supplicans. É verdade que a nota de fevereiro sobre o uso das fórmulas corretas nos sacramentos é irrepreensível (e ainda assim tem padre que continua realizando batizado inválido, pelo que fiquei sabendo), mas mantive o pé atrás quando soube que teríamos um documento sobre a dignidade humana. E não é que Dignitas infinita me surpreendeu positivamente?

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Já vi uma turma indignada com as próprias palavras iniciais da declaração, porque a dignidade humana seria imensa, mas não infinita, e os dois lados da discussão estão usando Santo Tomás em sua defesa. Nisso estou como a Glória Pires no Oscar; mas, ainda que as objeções façam sentido (e repito, não sei se fazem), seria algo que eu atribuiria menos a uma intenção explícita de defender bobagem e mais ao tremendo descuido atual com as terminologias corretas; é o tipo de cuidado que um Ratzinger sempre teve, mas que já não espero de um Fernández. Apesar disso, a explicação sobre a natureza e o alcance dessa dignidade está muito boa, assim como a descrição dos quatro sentidos do termo “dignidade”. Mas a coisa vai ficar boa mesmo no início da terceira parte, quando o documento afirma que “ainda que seja difundida uma sempre maior sensibilidade quanto ao tema da dignidade humana, ainda hoje se observam numerosos mal-entendidos sobre o conceito de dignidade, que distorcem o seu significado” (24). Nesse mesmo ponto, o cardeal Fernández já derruba um argumento comum do movimento abortista, o de que o nascituro é humano, mas não é pessoa, como se fossem coisas separadas ou separáveis:

“A dignidade de cada pessoa humana, porque é intrínseca, permanece ‘para além de toda circunstância’ e o seu reconhecimento não pode absolutamente depender do juízo sobre a capacidade da pessoa de entender e de agir livremente. De outro modo, a dignidade não seria, como tal, inerente à pessoa, independente dos seus condicionamentos e merecedora de um respeito incondicionado. Somente reconhecendo ao ser humano uma dignidade intrínseca, que não se perde jamais, é possível garantir a tal qualidade um inviolável e seguro fundamento. Sem nenhuma referência ontológica, o reconhecimento da dignidade humana oscilaria à mercê de diferentes e arbitrárias avaliações. A única condição para que se possa falar de dignidade inerente à pessoa é a sua pertença à espécie humana, pelo que ‘os direitos da pessoa são direitos do ser humano’”. (DI 24)

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A condenação ao aborto já era esperada, mas ela se dá de forma bastante dura e desmascarando a hipocrisia atual entre os seus defensores

E a artilharia continua:

“Em segundo lugar, o conceito de dignidade humana foi às vezes usado de modo abusivo também para justificar uma multiplicação arbitrária de novos direitos, muitos dos quais em contraste com aqueles originalmente definidos e, não raro, postos em contraste com o direito fundamental à vida, como se fosse devido garantir a expressão e a realização de toda preferência individual ou desejo subjetivo. A dignidade se identificaria então com uma liberdade isolada e individualista, que pretende impor como ‘direitos’, garantidos e financiados pela coletividade, alguns desejos e algumas propensões subjetivas.” (DI 25 – se você pensou nos Barrosos da vida, com seus confrontos ilusórios entre o “direito à vida” e a “autonomia da mulher”, acertou)

É a quarta e última parte que já está despertando as reações mais viscerais dos comentaristas guiados justamente por esse espírito criticado pela declaração nos pontos 24 e 25. É onde estão as aplicações concretas de um respeito verdadeiro pela dignidade humana intrínseca de cada pessoa humana. Não falo, obviamente, das referências ao combate à pobreza, ao tráfico de pessoas e à violência contra a mulher; ou da menção ao respeito aos migrantes; nem da chamada “violência digital” (embora alguns hão de torcer o nariz para a condenação à pornografia e ao jogo on-line). Falo, claro, das referências a temas de bioética e defesa da vida e da família.

A condenação ao aborto já era esperada, mas ela se dá de forma bastante dura e desmascarando a hipocrisia atual entre os seus defensores. “A aceitação do aborto na mentalidade, no costume e na própria lei é sinal eloquente de uma perigosíssima crise do senso moral, que se torna sempre mais incapaz de distinguir entre o bem e o mal, mesmo quando está em jogo o direito fundamental à vida”, diz a declaração (47), criticando “a difusão de uma terminologia ambígua, como aquela de ‘interrupção da gravidez’, que tende a esconder sua verdadeira natureza e a atenuar sua gravidade na opinião pública. Talvez este próprio fenômeno linguístico seja sintoma de um mal-estar das consciências”. No entanto, afirma o texto, “nenhuma palavra consegue mudar a realidade das coisas”. Uma estocada final naqueles que insistem em tratar o aborto como “assunto religioso”, uma falácia que pretende calar a voz da Igreja no debate público, é a afirmação de que “a pura razão é suficiente para reconhecer o valor inviolável de toda vida humana”.

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Diante da difusão recente de leis autorizando a eutanásia em vários países, Fernández também achou importante dedicar dois parágrafos ao tema. O texto faz referência ao eufemismo “morte digna” para criticar o uso de ”um conceito errado de dignidade humana para fazê-lo voltar-se contra a vida mesma” (51), e afirma que “ajudar o suicida a matar-se é, portanto, uma ofensa objetiva contra a dignidade da pessoa que o pede, mesmo que se esteja realizando um seu desejo” (52). Mas, se já era fácil antecipar o que viria em relação a esses dois temas, outros dois assuntos devem ter chamado muito mais a atenção da imprensa: a “barriga de aluguel” e as questões ligadas à ideologia de gênero.

Fernández não economizou palavras em nenhum desses dois temas. Sobre a “maternidade sub-rogada”, afirma que ela “viola a dignidade da criança” (49), transformada em “mero objeto” (48) em vez de ter o direito de “ter uma origem plenamente humana e não conduzida artificialmente, e de receber o dom de uma vida que manifeste, ao mesmo tempo, a dignidade de quem a doa e de quem a recebe”, e afirmando ainda que “o legítimo desejo de ter um filho não pode ser transformado em um ‘direito ao filho’ que não respeita a dignidade deste mesmo filho, como destinatário do dom gratuito da vida”. Mas também a dignidade da mulher que carrega a criança é violada, diz o texto. Com a “barriga de aluguel”, “a mulher se separa do filho que nela cresce e se torna um simples meio, sujeito ao lucro ou ao desejo arbitrário de outrem” (50).

Nada menos que seis parágrafos foram dedicados à ideologia de gênero – descrita como “tentativa de negar a maior das diferenças possíveis entre os seres viventes: a diferença sexual” – e a uma consequência sua, as terapias de mudança de sexo. O documento reafirma a condenação da Igreja à discriminação por orientação sexual, que está no Catecismo, mas em seguida denuncia que “as tentativas realizadas nas últimas décadas para introduzir novos direitos, não plenamente consistentes em relação àqueles originalmente definidos e não sempre aceitáveis, deram espaço a colonizações ideológicas, entre as quais tem um papel central a teoria de gênero (gender), que é perigosíssima porque cancela as diferenças na pretensão de tornar todos iguais” (56, citando um discurso de janeiro do papa Francisco). O cardeal Fernández ainda equipara a ideologia de gênero à primeira tentação sofrida pelo ser humano: “Querer dispor de si, como prescreve a teoria de gênero, independentemente desta verdade basilar da vida humana como dom, não significa outra coisa senão ceder à antiquíssima tentação do homem que se faz Deus e entrar em concorrência com o verdadeiro Deus do amor, revelado no Evangelho” (57).

O saldo do documento é indubitavelmente bom, bastante firme na defesa de princípios que soarão tremendamente absurdos aos ouvidos do mundo, mas que ao mesmo tempo é impossível à Igreja não defender

Por fim, sobre as terapias de mudança de sexo, o documento afirma que “o corpo humano participa da dignidade da pessoa, enquanto é dotado de significados pessoais, particularmente na sua condição sexuada” (60) e que, por isso, “a criação nos precede e deve ser reconhecida como dom. Ao mesmo tempo, somos chamados a cuidar da nossa humanidade e isso significa em primeiro lugar respeitá-la e aceitá-la assim como foi criada”, segundo o papa Francisco; portanto, “qualquer intervenção de mudança de sexo normalmente se arrisca a ameaçar a dignidade única que a pessoa recebeu desde o momento da concepção”. A única ressalva que o documento faz se refere ao caso de “uma pessoa portadora de anomalias dos genitais, já evidentes desde o nascimento ou que se manifestem sucessivamente”, já que uma intervenção médica para sanar tais anomalias “não configuraria uma mudança de sexo no sentido aqui entendido”.

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Em resumo, você pode invocar com a noção de “dignidade infinita”, pode achar que o documento poderia ter tratado de mais temas práticos, pode discordar da avaliação de que “hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais maturados em outros séculos para falar de uma possível ‘guerra justa’” (39; penso em um ucraniano lendo isso). Mas não pode negar que o saldo do documento é indubitavelmente bom, bastante firme na defesa de princípios que soarão tremendamente absurdos aos ouvidos do mundo, mas que ao mesmo tempo é impossível à Igreja não defender.

Anatomia de uma lorota

Semana passada você deve ter lido por aí alguma coisa sobre a instituição de uma “data fixa” para a Páscoa, que estaria sendo estudada pelo papa Francisco. Aparentemente, a matéria que mais viralizou nesse sentido foi a de um site chamado Melhores Destinos, especializado em notícias de viagem e promoções de passagens aéreas. Mas, bom, isso não passou de lorota, caô, fake news. O que o papa está analisando, e não depende só dele, é outra coisa, bem diferente.

Católicos e ortodoxos celebram a Páscoa (e todas as festas decorrentes dela) em datas distintas, desde a instauração do calendário gregoriano, em 1582. Já fazia alguns séculos que a Igreja vinha percebendo diferenças significativas entre o que acontecia no céu e o que estava marcado na folhinha, e por isso o Concílio de Trento autorizou uma reforma do calendário juliano, então em vigor. A Igreja convocou matemáticos e astrônomos (e o povo aí dizendo que a Igreja é inimiga da ciência...) e a mudança foi promulgada pelo papa Gregório XIII. O Ocidente católico a adotou de imediato; os países protestantes relutaram, mas finalmente adeririam no século 18; e o Oriente ortodoxo resistiu até o início do século passado.

Como a reforma do calendário “comeu” dez dias em 1582, muitas festas litúrgicas ortodoxas, inclusive a Páscoa, passaram a ser celebradas com atraso em relação à Igreja Católica e ainda hoje é assim, pois o calendário juliano continua valendo para alguns aspectos religiosos, embora na vida civil países como Grécia e Rússia hoje usem normalmente o calendário gregoriano. Esse atraso, no caso da Páscoa, não se limita a pouco mais de dez dias: por causa da forma como a data é calculada, ele pode ser de mais de um mês – a Páscoa ortodoxa neste ano cai em 5 de maio! Se quiser entender melhor, essa matéria do Pillar explica tudo com detalhes.

É isso que o papa Francisco gostaria de resolver: uma mesma data para católicos, protestantes e ortodoxos comemorarem a maior festa cristã. Não tem nada a ver com um dia fixo como é o 25 de dezembro para o Natal, nem mesmo com o estabelecimento de um domingo fixo do calendário civil. O papa pretendia fechar esse assunto até o ano que vem, para comemorar o 1.700.º aniversário do Concílio de Niceia, que estabeleceu as regras para determinar o dia certo da Páscoa cristã, mas pelo andar da carruagem será difícil. Curiosamente, mesmo que não haja acordo nenhum, em 2025 católicos e ortodoxos celebrarão a Páscoa no mesmo dia, 20 de abril.

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O que o papa Francisco gostaria de resolver é uma mesma data para católicos, protestantes e ortodoxos comemorarem a maior festa cristã. Não tem nada a ver com um dia fixo, nem mesmo com o estabelecimento de um domingo fixo do calendário civil

Pode ser que os jornalistas tenham simplesmente entendido errado e confundido uma unificação de datas entre igrejas com o estabelecimento de uma data fixa? Pode. Mas é verdade que já houve sugestões parecidas com a que circulou na mídia. A própria Igreja Católica já considerou a ideia em um apêndice da constituição Sacrosanctum Concilium, do Concílio Vaticano II: “O Sagrado Concílio não se opõe a que a festa da Páscoa seja celebrada em um domingo particular do calendário gregoriano, desde que todos os interessados, especialmente os irmãos que não estão em comunhão com a Sé Apostólica, deem seu assentimento”, o que nunca aconteceu. Mais recentemente, quem veio com uma ideia parecida foi Justin Welby, a principal autoridade religiosa anglicana, que propôs o segundo ou terceiro domingo de abril, mas até onde eu sei a ideia também não foi adiante. O Melhores Destinos citou como fonte de sua matéria o Estadão, segundo o qual Francisco estaria considerando uma ideia idêntica à de Welby, mas o repórter diz se basear em “alguns canais católicos” sem dizer quais são, o que complica muito as coisas. Eu até me esforcei na procura, mas não achei nada nessa linha de um domingo fixo; tudo que encontrei ia na linha da simples unificação das datas entre católicos e ortodoxos.

Então, ficamos assim: sites de promoções de passagens são bons para se informar sobre promoções de passagens, mas não para assuntos da Igreja Católica, certo?

Um convite para quem é de Juiz de Fora e região

A partir desta quinta-feira participo, em Juiz de Fora (MG), do 5.º Congresso Internacional de Ciência, Saúde e Espiritualidade (Conupes). Falarei da minha experiência de 15 anos escrevendo sobre ciência e fé, e faremos um minilançamento do meu livro de entrevistas, A razão diante do enigma da existência. Se você for da região, não deixe de participar!

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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