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Cardeais durante cerimônia que integrou o consistório de agosto de 2022.
Cardeais durante cerimônia que integrou o consistório de agosto de 2022.| Foto: Fabio Frustaci/EFE/EPA

Então Francisco não renunciou ao fim do consistório, nesta terça-feira. Nem mesmo deixou alguma dica muito relevante sobre a intenção de renunciar mais à frente. Mas nem por isso creio que a boataria vai retroceder tão cedo – “Francisco renuncia amanhã” tem tudo para ser o novo “Lula preso amanhã”. O fato é que sites noticiosos católicos e não confessionais encheram a internet de infográficos com estatísticas sobre a composição atual do Colégio de Cardeais – na verdade, com os 132 eleitores, que é o que interessa – e de como era o perfil deste grupo quando os últimos papas foram eleitos. Tudo para tentar achar a “direção” que os cardeais tomariam caso tivessem de se reunir agora para escolher um sucessor para Francisco. Acontece que a matemática, no caso, não permite previsões muito certeiras.

Antes dos números, no entanto, uma digressão. As regras atuais do conclave, estabelecidas por João Paulo II e levemente alteradas por Bento XVI em 2007 e 2013, estabelecem um máximo de 120 cardeais eleitores, mas o número atual subiu para 132 depois do consistório recém-concluído. Não existe nenhuma norma sobre o que fazer caso a Sé Apostólica fique vacante e haja mais de 120 eleitores, e Francisco também não emitiu nenhuma regra a esse respeito. O desfecho mais provável neste caso hipotético é que todos acabassem admitidos ao conclave, até porque qualquer critério para excluir cardeais e reduzir o número de eleitores a 120 (os mais novos? Os mais velhos? Os que foram criados cardeais mais recentemente? Os que são cardeais há mais tempo?) seria totalmente arbitrário. Mas, encerrada a digressão, vamos aos dados.

Um conclave agora seria mais diverso geograficamente. Especialmente graças à política de nomear cardeais das “periferias”, Francisco reduziu o peso de europeus (e, especificamente, de italianos) entre os eleitores. Quando ele foi eleito, a Europa ainda tinha a maioria (52%) dos eleitores e os italianos, sozinhos, respondiam por quase metade dos europeus (24% de todos os eleitores). Agora, os europeus são 40%, e os italianos são apenas 15%. Em contraste, subiu a porcentagem de eleitores da Ásia (16% agora contra 9% no conclave de 2013) e África (13% hoje contra 9% em 2013). No entanto, esse mesmo colégio eleitor majoritariamente europeu de 2013 elegeu um argentino, e desde 1978 não é mais preciso ser italiano para ter o status de candidato forte ao papado. Ao menos quando se trata de eleger e ser eleito papa, passaporte não é destino faz um bom tempo.

Para quem lê os conclaves em termos de “continuidade” ou “ruptura” com o pontificado anterior, algumas eleições recentes ficariam difíceis de explicar considerando apenas o papa responsável pela nomeação de cada cardeal eleitor

A maioria dos eleitores foi indicada por Francisco. Dos 132 cardeais que hoje seriam eleitores, o atual pontífice escolheu 64%, ou seja, quase os dois terços necessários para fazer um novo papa. Mas esse raciocínio, para ter alguma solidez, exigiria que todos esses cardeais votassem como um bloco unido, o que é algo muito difícil de prever. E, para quem lê os conclaves em termos de “continuidade” ou “ruptura” com o pontificado anterior, algumas eleições recentes ficariam mais difíceis de explicar, especialmente a do próprio Francisco (já que todos os eleitores em 2013 foram nomeados por João Paulo II e Bento XVI) e a de João Paulo II, quando 90% dos eleitores tinham sido criados cardeais por Paulo VI, hoje considerado mais “progressista” que Karol Wojtyła. O que impediria muitos cardeais nomeados por Francisco de escolher um sucessor de perfil diferente?

Dificuldades adicionais para o raciocínio do “voto unido” dos cardeais “de Francisco” foram mencionadas por John Allen Jr., do Crux: os novos cardeais se conhecem muito pouco ou quase nada e, justamente por virem de regiões e contextos tão diferentes, podem ter preocupações muito diversas. Uns estarão mais preocupados com a defesa da vida e da família (e mesmo esta defesa pode render prioridades diferentes, por exemplo, nos Estados Unidos ou na África), mas para outros haverá temas mais urgentes, como a liberdade religiosa – pensemos no nicaraguense Leopoldo Brenes, um dos nomeados por Francisco em 2014, ou nos indianos, às voltas com leis anticonversão. Quantos cardeais, por exemplo, compartilham da preocupação ambiental com a mesma intensidade de Francisco?

Sed contra. Já li por aí que João Paulo II e Bento XVI não se incomodavam em nomear cardeais que discordassem deles, dando mais peso ao critério das “sés cardinalícias” (dioceses grandes ou mais antigas, cujo bispo tradicionalmente se tornava cardeal) que à afinidade de pensamento. De fato, lembro de ter achado muito incomum a nomeação do alemão Karl Lehmann por João Paulo II, já que o bispo de Mainz tinha umas posições bem complicadas em assuntos morais e, um ano antes de virar cardeal, tinha até mesmo dito que João Paulo II deveria renunciar. Outro alemão que defende um punhado de barbaridades, Reinhard Marx, arcebispo de Munique, foi nomeado cardeal por Bento XVI.

Por outro lado, de acordo com essa linha de argumentação, Francisco estaria dando o barrete de cardeal apenas aos que fossem alinhados com ele, o que explicaria escolhas como Robert McElroy em vez de José Gomez ou Salvatore Cordileone, para ficar apenas nos bispos norte-americanos. Em outras palavras, segundo este raciocínio, se a “sé cardinalícia” tem um ocupante mais “progressista”, ele vira cardeal (como Blaise Cupich, de Chicago, e Wilton Gregory, de Washington); se o bispo é mais “conservador”, como em Los Angeles ou na Filadélfia, quando o arcebispo era o excelente Charles Chaput (San Francisco nunca foi “sé cardinalícia”), ele é deixado de lado. Agindo assim, Francisco estaria, de fato, criando um bloco mais coeso tendo em vista o próximo conclave.

Aqui eu retomo a linha de Allen: é um raciocínio que pode fazer sentido para quem se acostumou a categorizar todas as pessoas nos moldes das divisões culturais, políticas e ideológicas do ocidente rico, mas a Igreja, por seu caráter verdadeiramente universal, está muito além desse tipo de “caixinhas”. Além disso, não é exatamente verdade que Francisco só indique cardeais “progressistas” – um de seus maiores críticos na atualidade, o cardeal Gerhard Müller, foi um dos primeiros a ganhar o barrete de Francisco, em 2014.

No fim das contas, essas estatísticas todas estão mais para curiosidade que para um sinal real do rumo que um futuro conclave deve tomar – isso quando ele acontecer, obviamente.

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