Anos iniciais do ensino fundamental tiveram nota inferior à de 2017| Foto: Unsplash
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Políticas públicas de baixa qualidade adotadas nos últimos vinte anos levaram o Brasil a um cenário desolador no qual mais da metade das crianças de escolas públicas chega ao terceiro ano do ensino fundamental sem alcançar níveis suficientes de leitura (dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica, Saeb). E o pior de tudo é que não se tem um diagnóstico preciso para descobrir onde está o problema de aprendizagem.

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Para tentar mudar esse cenário, o Brasil começará a utilizar em 2021 a melhor avaliação internacional que existe hoje para medir a capacidade de leitura das crianças, o Estudo Internacional do Progresso em Leitura (PIRLS, Progress in International Reading Literacy Study). O teste, dedicado exclusivamente à aferição da chamada literacia de leitura em alunos do 4º ano, será aplicado no país pela primeira vez pelo Inep, órgão do Ministério da Educação (MEC).

O Brasil, contudo, poderia ter aplicado o PIRLS desde 2001 - mas preferiu continuar com outras avaliações menos exigentes. Em 2016, o país chegou a ceder à organização responsável pelo exame, a IEA (Association for the Evaluation of Educational Achievement), US$ 7,5 mil, mas não organizou nenhuma edição do PIRLS. A possibilidade de participação brasileira no exame há mais de 10 anos também foi fato desconhecido da maioria dos profissionais do "chão da escola".

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Dados apontam que países que aplicam o PIRLS há mais tempo têm maior chance de alcançar bons resultados em alfabetização, com efeitos positivos, de forma exponencial, nos anos escolares seguintes. Avaliações em larga escala como essas possibilitam comparações internacionais, permitindo que autoridades e formuladores de políticas públicas averiguem o desempenho dos alunos, mostrando-lhes onde devem ser aplicados recursos e energias e quais são as melhores estratégias para apoiar alunos na superação de suas fragilidades.

"Numa intervenção cirúrgica, você não faz uma operação para tirar um câncer sem saber antes onde ele está. Seria um gasto de recursos sem sentido. Na educação, é a mesma coisa", afirma Wiliam Cunha, diretor na Secretaria de Alfabetização (Sealf).

Já é consenso na ciência da educação que um ensino de qualidade se faz, necessariamente, em paralelo com avaliações frequentes dos alunos e a análise de resultados. É preciso saber como está a rede de ensino, quais são seus pontos fortes, fraquezas, oportunidades e desafios, como uma espécie de "matriz swot", para saber onde e como intervir.

"Na Sealf, somos pragmáticos e preocupados com o que dizem as evidências científicas, por isso queremos atuar com avaliações. É a forma correta de fazer um diagnóstico da qualidade de educação, com devolutiva para o país, o quanto antes, e de forma concreta já conhecida", afirma.

Como funciona o teste internacional

Para verificar o desempenho dos alunos dos primeiros anos do ensino fundamental em leitura, o PIRLS, além da avaliação direta dos alunos, reúne informações sobre fatores contextuais, como recursos educacionais, comportamento dos estudantes, práticas docentes e apoio doméstico. Esse questionário é aplicado a alunos, pais e professores, e colhe dados sobre contextos exteriores ao processo específico de aprendizagem formal, mas que são relevantes para melhor compreender os resultados.

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Para muitos especialistas, o teste tem um nível exigente do qual o Brasil parece estar muito longe de alcançar. Apenas um texto do exame, por exemplo, tem seis laudas. Até então, o Brasil adotava apenas a Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA), depois inserida no conjunto de provas do Saeb, para avaliar de forma amostral a capacidade de leitura de alunos do 3º ano.

"Com o PIRLS, conseguimos avaliar exatamente onde está o problema de dificuldade que o aluno tem em leitura. E conseguimos ter ferramentas para atuar sobre esses problemas. As provas são muito calibradas. A IEA também desenvolve o TIMSS, exame mais longevo que existe, mais consolidado, o que está sendo aplicado há mais tempo no mundo", afirma Cunha.

A IEA, que produz o exame, estabelece que, num primeiro momento, é preciso compreender o conceito de literacia de leitura, ainda não internalizado no país. Essa definição tem duas finalidades que devem ser aferidas, para saber se o aluno compreende textos informativos e narrativos.

"Existem correntes ideológicas que afirmam ser uma terrível pressão avaliar o aluno. Para nós, o que é opressão é o aluno não aprender, sair da escola sem um futuro digno. E se a avaliação é uma ferramenta para combater isso - e é - a gente vai abraçar", afirma Cunha. "Queremos oferecer ao país o que há de melhor, independentemente de qualquer opinião pré-concebida, do tipo criança não pode ser avaliada porque isso é opressão. Não é por aí que vamos direcionar nossas políticas públicas. E nem o contrário. Se houver comprovação de que avaliar crianças pode prejudicá-las, não faremos".

A intenção por meio de provas como o PIRLS também é a de comparar o desempenho entre vários países e analisar as diferentes estratégias adotadas frente à literacia de leitura. "Temos certeza de que o brasileiro não é pior, inferior, do que os outros. Talvez, tenhamos que repensar nosso sistema educacional. E para mudar isso, temos que saber como os alunos aprenderam até agora. É importante diagnosticar o estado atual da qualidade da alfabetização que, inclusive, o pagador de imposto está bancando", afirma o especialista.

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"Temos certeza de que o brasileiro não é pior, inferior, do que os outros. Talvez, tenhamos que repensar nosso sistema educacional. E para mudar isso, temos que saber como os alunos aprenderam até agora. É importante diagnosticar o estado atual da qualidade da alfabetização que, inclusive, o pagador de imposto está bancando", afirma o especialista.

Aprender a ler x ler para aprender: a plasticidade do cérebro

Aprender a ler, em um primeiro momento, e depois ler para aprender. Essa tem se mostrado a forma mais eficiente de se consolidar o aprendizado, afirmam especialistas. Ir por outros caminhos, com métodos indiretos - como fazem os construtivistas - seria como tentar "reinventar a roda".

Evidências mostram que a chamada plasticidade do cérebro tem seu ápice durante os primeiros sete anos de vida e, com o tempo, ela cai rapidamente. É uma etapa cuja janela de oportunidade não será igual nunca mais em todo o resto da vida.

"Crianças serão incapazes de conseguir aprender tanta coisa quanto nessa época. A sensibilidade de aprendizagem naqueles anos é muito maior do que em qualquer outra fase da vida, principalmente para linguagem, números, habilidades sociais. É ali que temos que intervir", explica o diretor da Sealf. "Se deixarmos para os 16 anos, conseguimos, claro, algum retorno, mas com muito mais esforço. E esforço implica recurso. No Brasil, temos que saber utilizar nossos recursos".

Para ele, os resultados do PISA, por exemplo, que avaliam estudantes aos 15 anos, são obtidos "tarde demais", não permitindo intervenções significativas no desempenho do aluno na área da leitura. A proposta do PIRLS é, portanto, chegar mais cedo, nos primeiros anos do ensino fundamental, para alcançar a janela de oportunidade.

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"Conseguimos fazer uma medida comparativa da qualidade da leitura dos nossos alunos e a qualidade da nossa alfabetização, em uma etapa que ainda conseguimos intervir, porque é no 4º ano. O PIRLS permite que saibamos quais são as nossas maiores fragilidades, e possamos conceber políticas orientadas nesse sentido", explica o diretor da Sealf.

Importante dado apontado pelos questionários do PIRLS é que, em termos internacionais, os alunos com melhores resultados são aqueles que frequentam a educação pré-escolar ou participam em casa, com os pais, de atividades de leitura. É nesse sentido que atuam os programas da Sealf e o próprio PNLD infantil 2022.

"É difícil dizer a razão pela qual o país não aderiu à prova antes. Estaríamos apenas confabulando. Existem algumas narrativas que são contrárias às avaliações, por vários motivos. Nós chegamos, vimos que havia a possibilidade de fazer a avaliação, estava no fim da janela de aplicação e, imediatamente, decidimos aderir", afirma Carlos Nadalim, secretário de Alfabetização (Sealf) do MEC.

"Talvez eles não quiseram, seria uma coisa dura, chata para a criança, acharam que ela teria que brincar mais do que aprender no começo da vida escolar. Nós não pensamos assim. Achamos, sim, que a criança tem que brincar, principalmente quando a brincadeira tem intencionalidade pedagógica. É momento chave, de ouro. E existem formas de aproveitar de maneira lúdica."

O desempenho dos países no PIRLS

Dados da última edição do PIRLS revelam que, entre todas as nações que participam do exame, a Rússia é a que mais se destaca. O país começou a aplicar a prova quando que ela teve início, em 2011. Desde então, evoluiu de 528 (2011) a 581 (2016) pontos na escala que mede o desempenho das nações. A África do Sul foi o país que figurou na última posição da escala.

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Na Singapura, por exemplo, que também se destaca, 29% dos alunos, em 2016, alcançaram a marca "avançada" de capacidade de leitura no PIRLS. Isso é: "ao lerem textos literários relativamente complexos, os alunos conseguem: interpretar acontecimentos da narrativa e ações das personagens a fim de apresentar razões, motivações, sentimentos e evolução das personagens, baseando-se na totalidade do texto; começar a avaliar os efeitos que as escolhas de linguagem e de estilo feitas pelo autor podem ter sobre o leitor".

E, ainda: "ao lerem textos informativos relativamente complexos, os alunos conseguem: distinguir e interpretar informação complexa proveniente de diferentes partes do texto e fundamentar, baseando-se na totalidade do texto; relacionar informação apresentada ao longo do texto a fim de explicar relações e encadeamento de ações; começar a avaliar elementos visuais e textuais a fim de contemplar o ponto de vista do autor."