| Foto: Valterci Santos / Gazeta do Povo / Arquivo
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E se analfabetismo matasse? Certamente o Brasil alcançaria uma taxa de pelo menos 11,5 milhões de óbitos dessa natureza, como mostram dados da PNAD Contínua, do IBGE. Quem seriam os culpados por tantas mortes? Professores do chão da escola ou os autores que regem as ementas curriculares das academias? Conceitos de Emília Ferreiro e Paulo Freire deveriam ser sentenciados? Explicarei a trama a seguir. Se ficar até o fim, também vai entender o que médicos e professores têm em comum.

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Por "sorte", analfabetismo não mata instantaneamente, como, muito provavelmente, morreria o paciente hipertenso a quem o médico recomendou uma dieta rica em sal. Contra todas as evidências disponíveis, o profissional de saúde pode ter achado que isso cairia bem ao indivíduo hipertenso afadigado. Analfabetismo "apenas" tira a oportunidade de indivíduos que, sem estudo, estão no mercado de trabalho informal e, sem boas condições de vida, como até mesmo a desnutrição e incapacidade financeira para bancar tratamentos de saúde, podem vir à morte.

Esta situação hipotética lhe parece inusitada, dramática demais? Ora, não se escandalize. Se é possível morrer até mesmo bebendo suco de cenoura, por que não de analfabetismo, a longo prazo e indiretamente? O ponto é: sem o alicerce da leitura, é impossível galgar outros passos na educação e, sobretudo, na vida.

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Se analfabetismo matasse, insisto, talvez gastaríamos esforços máximos aplicando as melhores evidências para alfabetizar os alunos.

Médicos não devem negligenciar ciência. Por que o fazem os educadores?

A cada três minutos, 2,47 brasileiros morrem em decorrência de erros médicos que poderiam, em grande parte, ser evitados. Esses eventos fatais da medicina incluem negligência, por exemplo, ou serviço de baixa qualidade. Atenção, pedagogos e outros interessados na sala de aula, não abandonem a leitura. Voltaremos a falar sobre lousa e giz de cera em breve.

O que mencionei acima foi revelado por uma pesquisa de 2016 feita em conjunto pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e o Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), intitulada "Erros Acontecem: a Força da Transparência para o Enfrentamento dos Eventos Adversos Assistenciais em Pacientes Hospitalizados".

Entre outras coisas, o estudo aborda a tomada de decisões assistenciais baseada em evidências científicas com foco em segurança. Isso é, a prestação de serviços deve se dar com base no conhecimento científico, sem ressalvas. Médicos não podem, em hipótese alguma, atuar por achismo.

Ir contra os achados científicos disponíveis e tão consolidados - como o fato peremptório de que hipertensos não devem ter uma dieta rica em sal - pode ser fatal à saúde do paciente, provocando eventos adversos como mortes, sequelas definitivas e transitórias, sofrimento psíquico etc. A ONG norte-americana National Patient Safety Foundation (NPSF) lembra que "as consequências da insegurança do paciente vão além dos óbitos e inclui a morbidade e formas mais sutis de prejuízos como a perda da dignidade e do respeito".

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Ouso, ainda, dizer que ir na contramão dos achados científicos se assemelha, por exemplo, ao intuito de reinventar a lâmpada incandescente, colocando à prova as descobertas de Thomas Edison. Por qual razão alguém administraria suco de groselha em um paciente que precisa receber soro na veia?

"As decisões assistenciais devem ser baseadas em evidências científicas. Os pacientes devem receber tratamento com base no melhor conhecimento científico disponível, à luz da capacidade financeira do sistema. A assistência não deve variar de médico para médico ou de lugar para lugar".

"Erros Acontecem: a Força da Transparência para o Enfrentamento dos Eventos Adversos Assistenciais em Pacientes Hospitalizados"

Em outro relatório, de 2000, intitulado "Errar é humano", tivemos notícia de que aproximadamente "1 milhão de pacientes admitidos nos hospitais norte-americanos ao ano eram vítimas de eventos adversos assistenciais, sendo mais da metade deles oriundos de erros que poderiam ter sido prevenidos (KOHN et al., 2000). As mortes resultantes destes episódios representavam, então, a quarta maior causa de mortalidade naquele país. Excediam, por exemplo, mortes atribuíveis aos acidentes automobilísticos, ao câncer de mama ou à imunodeficiência adquirida (BATES et al., 1997)".

"A população hospitalizada no nordeste dos Estados Unidos foi avaliada e se verificou que os eventos adversos da assistência ocorriam em 3,7% do total das internações, sendo 69% atribuíveis a erros previsíveis e 27,6% à negligência. Embora 70,5% dos eventos determinassem incapacidades com duração menor que seis meses, 13,6% resultavam em morte e 2,6% causavam sequelas irreversíveis", diz o estudo.

Por fim, a pesquisa explica que "a gravidade dos eventos adversos relacionados à assistência médico-hospitalar foi de tal magnitude e impacto social, que desencadeou uma ampla mobilização de órgãos governamentais e não governamentais em todo mundo, incluindo o Brasil, para o controle e prevenção destas ocorrências".

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Academia é refratária aos achados científicos

Se médicos, portanto, devem seguir evidências já consolidadas a fim de não causar prejuízos de tal magnitude, não o deveriam também os professores, responsáveis, em grande parte, pelo desempenho acadêmico dos alunos?

Os indicadores brasileiros de alfabetização são verdadeiramente incômodos. Vamos ao diagnóstico dos pacientes da educação: na conjuntura atual, mais da metade das crianças de escolas públicas do Brasil chega ao terceiro ano do ensino fundamental sem alcançar níveis suficientes de leitura, revelam dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). Outros 33% desses alunos têm níveis insuficientes de escrita e 54%, de matemática. Nem mesmo em estados com o melhor desempenho do país o cenário é animador: duas a cada cinco crianças não têm nível suficiente de leitura no terceiro ano.

Em leitura, alunos brasileiros figuram nas últimas colocações do exame internacional Pisa. Até nossos pares na América Latina se saem melhor. Ora, restam dúvidas de que estamos no caminho errado?

Ao que tudo indica, quando olhamos para a comunidade internacional, a Revolução Industrial aconteceu no resto do mundo e nós, brasileiros, com relação à alfabetização, ainda estamos prestigiando o motor a vapor. Muitos dos autores cujos conceitos são endeusados pela Pedagogia e pela Psicologia faleceram no século passado - quando, como explicam Vitor Haase e Henrique Simplício em artigo para a Gazeta, ferramentas como as imagens de ressonância e o estudo da neurociência tinham seus primeiros avanços.

Determinadas abordagens de alfabetização, hoje refutadas pela ciência, se tornaram base para a elaboração de currículos acadêmicos e políticas públicas no país. É o caso, por exemplo, da teoria psicopedagógica "Psicogênese da Língua Escrita", da pesquisadora argentina Ana Teberosky e da psicóloga ainda viva Emília Ferreiro, discípula do chamado construtivismo de Jean Piaget.

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Suas abordagens serviram como insumo para a elaboração de políticas na América Latina e, no Brasil, para os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de 1998, além de outros documentos oficiais das gestões passadas do MEC. Currículos pedagógicos em universidades e materiais didáticos, em sua grande maioria, permanecem até hoje condicionados a esse viés teórico. Em resumo, o problema com essa abordagem que domina a educação no país é que ela vai na contramão da ciência. Se quiser entender melhor sobre isso, sugiro que leia a matéria aqui linkada.

Noam Chomsky, linguista e cientista cognitivo norte-americano, teve descobertas que foram marco na história. Ele identificou uma predisposição no cérebro humano para a aquisição da linguagem verbal. Isso significa que, naturalmente, pelo simples fato de estarmos inseridos em ambientes com interação pela fala, aprenderemos a falar. Nosso cérebro foi programado para isso. O equívoco do construtivismo foi considerar que esse mesmo padrão identificado por Chomsky se aplicaria à aquisição da leitura-escrita.

Como também explicou essa Gazeta do Povo, no entanto, embora nosso cérebro tenha uma predisposição para a fala, esse órgão não é programado para ler, uma vez que a escrita é um código cultural inventado pelo ser humano, só sendo possível aprendê-lo por meio de ensino sistemático e explícito. Enquanto algumas atividades são naturais para o ser humano, como andar, se locomover e, até, falar (salvo exceções, como casos de transtornos), a leitura é algo que o cérebro não foi programado para decifrar.

Este órgão, na verdade, não é capaz de, automaticamente, decodificar sistemas inventados pelo ser humano. É natural correr, por exemplo, mas não é natural jogar futebol. Para isso, é preciso ter conhecimento de uma série de regras. Concluiu-se, portanto, que é necessário ensino direto, explícito e sistemático para o aprendizado da leitura e da escrita.

Para quem preza pelo embasamento empírico, o primeiro fato que torna a pesquisa de Emília Ferreiro quase irrelevante é que ela possui amostragem baixíssima. Em seu estudo, ela fez espécies de entrevistas com crianças que, quase em sua maioria, eram de classe média (justamente, a ciência mostra que alunos socioeconomicamente vulneráveis não conseguem aprender sob o método construtivista).

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Claudia Cardoso-Martins, doutora em Psicologia pela Universidade de Illinois e professora titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), chama atenção para um ponto importante: Emília Ferreiro não se debruçou sobre uma teoria da aprendizagem, mas do desenvolvimento. Isso é, a pesquisadora não estava a desenvolver um método para que professores utilizassem para alfabetizar. Ela estava a analisar, sob o ponto de vista da psicologia e não da ciência cognitiva, por exemplo, o comportamento das crianças com relação à aquisição da escrita nos anos pré-escolares.

De qualquer forma, em que pese não tenha elaborado teorias de ensino, a pesquisa de Emília Ferreiro serviu como esteio para isso, uma vez que é necessário saber como se dá o desenvolvimento para aplicar metodologias de ensino. Além de tudo, é claro, mesmo quando se trata de comportamento, também estamos a tratar de ciência cognitiva.

A especialista da UFMG passou a estudar a pesquisa de Emília após conhecê-la pessoalmente quando ela veio ao Brasil. "Achei o trabalho fascinante, e foi por isso que eu me interessei. Que fique claro, Emília nunca falou que as crianças deveriam aprender a ler assim ou assado. Mas, de certa maneira, educadores tomaram a teoria dela e a usaram para alfabetizar. Isso foi completamente errado", diz.

Emília afirma, por exemplo, que haveria um padrão comportamental nas crianças. Um dos estágios chave desse processo de aquisição da escrita seria o que ela chama de estágio silábico. Isso é, pela primeira vez, a criança conceberia a escrita como uma representação de sons, mas ela acreditaria que a letra corresponde a uma sílaba inteira na palavra. Se você pedisse ao aluno para escrever a palavra "bola", ele poderia escrever apenas "o" + "a".

Ainda segundo Emília, depois de a criança construir, por intuição própria, hipóteses silábicas, ela iria descontruir por conta a hipótese para segmentar a pronúncia dos sons constituintes da palavra, até chegar a cada letra, mais especificamente. Acontece que essa tese não se aplica à realidade e não existem provas concretas dessa progressão. Através de seus estudos, Cláudia confirmou que crianças podem sim escrever silabicamente, mas isso ocorre de forma aleatória, revelando, portanto, que a frequência da escrita silábica não ocorre acima do seria esperado. Resultado? Uma vez que o padrão não se repete igualmente em todos os indivíduos, crianças precisam de ensino explícito e sistemático, como prezam as chamadas abordagens fônicas.

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"A concepção da Emília não corresponde à realidade. O desenvolvimento tal como descrito por ela não é a melhor maneira de descrever o desenvolvimento da escrita que vemos nas crianças. Em todos os nossos estudos, observamos que não existe essa ideia de que criança passa por um estágio silábico. Isso não está respaldado pelos dados. Contudo, mesmo que eu não concorde com Emília, a teoria dela é teoria do desenvolvimento, e não da aprendizagem"

Cláudia Cardoso-Martins

Cláudia também ressalta que, "hoje, sabemos exatamente como ensinar uma criança a ler e escrever. Já temos evidências de sobra. A educação já devia saber disso, mas, aparentemente, teorias como essa parecem estar enraizadas".

Ignorância, malícia ou mediocridade?

Minha última provocação aqui é: se as evidências existem, é imprescindível que academias, escolas, educadores trabalharem baseados nas melhores práticas e evidências.

Permanecer refratário aos achados da ciência não apenas nos coloca nos últimos patamares em rankings internacionais que medem a qualidade da educação no mundo. Na prática, esse cerco ao conhecimento adoece o ensino do "chão da escola" e faz com que alunos tenham desempenho sofrível.

Também em matéria desta mesma Gazeta do Povo, discorremos sobre os efeitos danosos que a rejeição à intelectualidade tem na sociedade. O anti-intelectualismo, na realidade, tem sido preservado como espécie de virtude dentro das academias de ensino - espaço que, em tese, deveria ser voltado à pesquisa por método científico e cultivo do conhecimento.

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Diferentemente do que ocorre em áreas de Exatas, por exemplo, nas quais, em geral, o caráter empírico das ciências não é colocado em questão, o viés anti-intelectualista tende a predominar no campo das ciências humanas e tem suas raízes na Escola de Frankfurt, a partir da década de 60. Os especialistas apontam que essa corrente, que busca colocar conceitos em xeque e identificar relações de poder em todos os aspectos, tem hegemonia, sobretudo, no campo da Pedagogia. O anti-empirismo e anti-experimentalismo cultivados na educação brasileira e o cerco a qualquer outra abordagem faz com que muitos bons profissionais deixem o país.

Antes que você conclua o seu próprio juízo de valor, caro leitor, preciso lhe dizer que o que ocorre no Brasil não é por falta de aviso. Vamos à linha do tempo: as melhores práticas para a alfabetização foram defendidas por importantes documentos, como o de 2003, "Alfabetização Infantil: os novos caminhos", elaborado pela Comissão de Educação da Câmara dos Deputados e reeditado em 2019. Mas, à época, gestores estavam ocupados demais com outras teorias e, portanto, não deram ouvidos.

Entre outras coisas, o relatório concluiu que as políticas de alfabetização promovidas pelo Brasil até então não observavam a evolução científica ocorrida mundo afora nos últimos 30 anos. Além disso, o desempenho insuficiente de milhares de alunos à época seria fruto do "fosso que separa o país dos conhecimentos e práticas mais atualizados", alegaram os autores. Surpreendentemente, o relatório foi reeditado em 2007, mas não acolhido por parte das gestões passadas.

No Ceará, Sobral, ilha de excelência em educação no país, também nos indicou o caminho através do "Relatório final do Comitê Cearense para a Eliminação do Analfabetismo Escolar: Educação de qualidade começando pelo começo". Adivinhem?

Se nos deram notícia das evidências científicas disponíveis e não as adotamos, me resta supor que não o fizemos por duas prováveis razões: malícia ou mediocridade. Quem será sentenciado pelas vidas "perdidas" para o analfabetismo?

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