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Luis Roberto Barroso
O presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso.| Foto: Reprodução/TV Justiça

Recentemente, repercutiu no mundo jurídico-político brasileiro a informação de que, em nosso país, o Judiciário custa ao contribuinte acintosos 1,6% do PIB nacional, proporção que coloca o Brasil no topo do ranking dos países que mais gasta dinheiro público com o Poder Judiciário. Imediatamente, o ministro Luís Roberto Barroso, na condição de presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, endereçou o fato, respondendo às naturais críticas. Corretamente questionava “quanto vale o Judiciário?”, afirmando que, por ser “inestimável, Justiça não se mede em dinheiro”.

Como argumenta o ministro, há “coisas que têm valor, mas não têm preço”. Certamente a segurança jurídica, sob a ótica de um Estado de Direito, é uma delas. O Judiciário, antes de ser um fim em si mesmo, é apenas um dos tantos mecanismos que podemos usar em uma sociedade para alcançá-la. A falta dela – e não o custo do Judiciário ao erário – é que parece ser o problema. A crítica que interessa, portanto, não é tanto a orçamentária (afinal, o brasileiro já está mesmo passivamente habituado à escandalosa carga tributária nacional), mas sim a cultural. A insatisfação que efetivamente ronda o Judiciário, e todo o sistema político brasileiro, é com a ausência de uma mentalidade instintivamente compartilhada por todos de efetivo respeito ao direito. Historicamente, a função de uma Constituição é a de limitar, e não de expandir, os poderes políticos. O problema é que a filosofia jurídica dominante entre os aplicadores do direito não tem contribuído para melhorar o cenário.

Ao focar nos grandes objetivos políticos nacionais, o Judiciário perde a legitimidade de sua própria função.

Com satisfação, o ministro Barroso destaca que “a Justiça brasileira é, provavelmente, a mais produtiva do planeta”, sendo que “nossos juízes julgam quatro vezes mais do que a média de um juiz europeu”. O trabalho dos juízes brasileiros, espalhados por um país continental, é inegável e certamente elogiável – assim como o dos demais operadores do direito. No país da insegurança jurídica, todos profissionais do direito trabalham mais do que deveriam, e as estatísticas que questionam a satisfação profissional e a sanidade mental dos operadores do direito mostram isso. Contudo, o que o ministro não percebe é que nosso elevadíssimo grau de “judicialização da vida” (título de um dos seus livros), é justamente o problema. O Judiciário não é, nem deveria tentar ser, a administração pública. Ter um Judiciário tão “produtivo” e abrangente pouco ajuda no estabelecimento e no aprimoramento de um Estado de Direito e de uma cultura de respeito à lei no Brasil. Em um sistema judicial lotérico, a judicialização de todos os aspectos da vida, em verdade, apenas demonstra a ausência de uma cultura de respeito à lei e de respeito às limitações ao poder que a lei deveria impor.

Uma das causas desse estado de coisas decorre do que tem se chamado de ativismo judicial, o qual é iluminado por uma filosofia jurídica cujo principal expoente em território nacional é, justamente, o professor Barroso. Em um dos seus artigos, onde defende o “novo constitucionalismo”, Barroso, sarcasticamente, começa com a seguinte epígrafe: “Chega de ação, queremos promessas”. De um modo espirituoso, ele denota a mentalidade dominante do mundo jurídico brasileiro: agora compete ao Judiciário dar efetividade “aos direitos” e aos compromissos constitucionais. O mundo das promessas vazias e dos programas políticos da Constituição, que só aconteceriam no futuro, acabou. Agora, finalmente agora, o Judiciário vai corrigir as injustiças que sempre rondaram a humanidade e o Brasil. Não era sem tempo, ora, pois! Como não se pensou nisso antes?

O direito tem uma função pacificadora em uma sociedade plural. Logo, ele não pode ter agendas políticas.

Esse “fetiche pela eficácia” dos direitos é sedutor. Naturalmente, não há quem se oponha a ele em abstrato. Entretanto, a realidade humana, nossos desacordos inerentes a uma sociedade efetivamente democrática, acabam por tornar tal utopia em uma ingênua quimera. Achar que compete ao Judiciário implementar, ao mesmo tempo, e para todos, todas as promessas de justiça previstas na Constituição, como se não houvesse desacordo sobre os meios para alcançar tais metas, é, em verdade, violar as bases do Estado de Direito que tornariam tais objetivos políticos possíveis numa sociedade pluralista. O direito tem uma função pacificadora em uma sociedade plural. Logo, ele não pode ter agendas políticas. Ele precisa ser neutro para que a responsabilidade da comunidade como um todo possa ser ajustada democraticamente. A responsabilidade é da coletividade e não de uma aristocracia (no bom sentido do termo) que “ingressa na carreira exclusivamente por mérito”, como ele mesmo ressalta.

Ao defender o “protagonismo sem iguais no mundo” que a Constituição brasileira supostamente dá ao nosso Judiciário, este deixa de ser “o mais desconhecido dos poderes, sem armas nem a chave do cofre”, para se tornar o centro da política nacional. E não falo apenas do Supremo. O Judiciário é o centro da política em sentido amplo. Será que os prefeitos e vereadores do Brasil, constantemente invadidos na sua competência orçamentária por um sem-número de decisões judiciais, realmente acham que o Judiciário não tem a chave do cofre? Ao ingressar na implementação de toda e qualquer política pública, anulando as deliberações naturais da esfera da política, o Judiciário deixa de ser um órgão “técnico” de aplicação das leis, e se torna um agente da política. Ao sê-lo, necessariamente, e até instintivamente, passará a ser questionado em termos políticos – como, por exemplo, do ponto de vista orçamentário.

Qual conflito o Judiciário brasileiro efetivamente resolve com base na lei? Eu arriscaria dizer que nenhum. Os próprios advogados não argumentam mais com base na lei. No Brasil do novo constitucionalismo dos direitos, todos os casos se tornam hard cases, como ensina o próprio professor Barroso. Todos eles viram, ou tem o potencial de virar, grandes debates argumentativos sobre o conteúdo dos princípios jurídicos ou sobre os objetivos políticos nacionais. A definição de prioridades e de abrangência de temas que são políticos por natureza está, cotidianamente, sendo usurpada do espaço democrático e sendo levada para as cortes, como se a definição do princípio da liberdade (ou de qualquer outro) fosse algo definível em termos jurídicos objetivos, inequívocos e não passíveis de uma perene divergência político-ideológica. O debate político brasileiro não parece mais ser do povo brasileiro, no espaço público. Ele é do Judiciário, nosso grande guardião, no espaço da jurisdição. Tudo em nome dos direitos, claro.

No Brasil, o juiz ideal nunca se frustra ao proferir uma sentença: ao julgar um caso, qualquer que seja, sua visão de mundo é sempre a vitoriosa. Está sempre plasmada na sentença. Parece que o legislador, ou a sociedade brasileira, nunca discordaram da visão de mundo dele, em nenhum caso. A mentalidade dominante preconiza ao juiz que sua própria visão da justiça é superior àquela estabelecida na lei. Longe de ser aplicação da justiça no caso concreto, isso é um ativismo político que tende a transformar o Judiciário em administração pública: a tarefa que era de todos, por meio de políticas públicas definidas no âmbito da política (e controlada eleitoralmente), gradativamente se transforma em questão supostamente técnica e meramente jurídica, como se a política em torno desses temas não existisse. Os objetivos gerais da nação não competem mais à administração pública, mas ao Judiciário.

Em nome de valores materiais se esquece a formalidade do direito – e tal esquecimento descuida do valor central que era protegido pelo “velho” constitucionalismo: a liberdade.

No horizonte da constante “judicialização da vida”, por força do mainstream jurídico contemporâneo, nenhum debate se estabiliza politicamente, mas apenas juridicamente. O ativismo tem várias consequências e paradoxos. Para citar apenas um, vemos que se o juiz tem uma agenda que se equipara àquela que qualquer cidadão ou político legitimamente sustenta no âmbito da política, se ele é parte da engrenagem de um sistema que busca implementar objetivos políticos pré-determinados, então ele, paradoxalmente, será menos livre enquanto magistrado, visto que mero instrumento da agenda política da moda. Carecerá de independência funcional – e assim vemos o CNJ, por exemplo, tentando controlar vários aspectos da jurisdição, em nome de sua agenda.

Agora, veja, não estamos generalizando: o problema não é a classe. A crítica, no fundo, não é ao Judiciário, nem sequer aos Juízes. Tampouco a crítica é à Constituição abrangente, mas sim à filosofia que instrumentaliza o direito para o “progresso” – claro, uma visão bem específica e bastante ideológica (“iluminista”, como insiste o professor Barroso, e a única iluminada) de progresso. A crítica, portanto, é à mentalidade, a uma cultura jurídica que se instalou nas raízes da prática jurídica nacional e que ultrapassa o Judiciário. Ou alguém duvida que, no contexto da cultura jurídica dominante, poderia haver qualquer coisa escrita na Constituição, que ainda assim o texto expresso seria solenemente superado, distorcido ou “interpretado”, para não deixar o aplicador de plantão politicamente frustrado?

A cultura de respeito ao direito precisa ser pressuposta pelo sistema jurídico. Nosso problema é que não temos e tampouco nutrimos essa cultura. A lei não ilumina nossa prática jurídica. Ao contrário, ela é o empecilho a ser superado. Enquanto que a lei deveria servir para estabelecer a ordem na sociedade e limitar o poder político daqueles que o exercem, na visão dominante, o direito serve, inversamente, para ampliar e expandir ao infinito os poderes do Judiciário, afinal, a ele, e somente a ele, cabe implementar, à perfeição total, as promessas de justiça da Constituição.

O que se ignora nessa percepção das coisas é que legitimamente discordamos. Discordamos sobre a própria perfeição. Justamente por isso temos, na natureza humana, um espaço importante para a política. Assim, diferentemente do que pensa Barroso, não compete ao Judiciário ter agendas políticas que ultrapassem a própria aplicação do direito em si mesmo. Em nome de valores materiais se esquece a formalidade do direito – e tal esquecimento descuida do valor central que era protegido pelo “velho” constitucionalismo: a liberdade. O direito não serve à implementação de quaisquer “direitos”, essa é tarefa da política. O direito é mais modesto: ele serve apenas ao seu fim próprio, à segurança jurídica. Se ele servir para qualquer outra agenda, por mais nobre que seja (combate à corrupção, combate à desinformação, implementação da agenda 2030, entre tantas outras), ele terá deixado de atender a sua única função social que é manter a ordem e o respeito à lei, permitindo que as pessoas vivam em comunidade de modo livre e em condições de igualdade. Ao focar nos grandes objetivos políticos nacionais, o Judiciário perde a legitimidade de sua própria função, deixando de fazer aquilo que deveria nutrir: o estabelecimento de uma cultura de respeito à lei no Brasil. E é essa a verdadeira crítica que vemos ao Judiciário brasileiro.

O ministro finaliza com sabedoria: “Somos uma democracia jovem e em construção ... instituições precisam ser sempre aperfeiçoadas”. É verdade. Agora, tal aprimoramento começa com uma mudança cultural que resgate o direito da armadilha ideológica e da instrumentalização planejada por pensadores idealistas e muito bem-intencionados como o professor Barroso.

Bruno Irion Coletto é mestre e doutor em Direito pela UFRGS e mestre em Política pela The New School for Social Research. 

Conteúdo editado por:Jocelaine Santos
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