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Plenário da Câmara dos Deputados: pauta anticorrupção perde força quando boicotada por interesses políticos.| Foto: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados

Embora trate de um tema histórico e sistêmico, a pauta anticorrupção talvez nunca tenha estado tão em voga no Brasil como nos últimos anos. Ganhou força com a redemocratização, na década de 1980, ficou evidente no impeachment de Fernando Collor, nos anos 1990, e viu desdobramentos inéditos a partir da operação Lava Jato, quase uma década atrás. E hoje, como o tema está sendo endereçado nas instituições democráticas?

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Para especialistas, houve avanços e retrocessos. Mas a causa-raiz da questão estaria longe de ser atacada. Entre os motivos está o fato de que o Brasil não criou uma política pública que trate do tema. E, ainda, por manter o foco no padrão punitivo em vez de tratar com mais rigor no âmbito do controle e da fiscalização, a corrupção ganha meios mais fáceis de ser “contornada” em todas as esferas do poder.

Existem no meio político, no Judiciário e na sociedade civil tentativas de abrir caminhos mais efetivos nestes termos. Mas a pauta anticorrupção perde força quando, entre estes mesmos entes, percebe-se o boicote. Na opinião do presidente do Instituto Não Aceito Corrupção (INAC), Roberto Livianu, que é também procurador de Justiça do Estado de São Paulo, um exemplo foi a nova Lei de Improbidade Administrativa (14.230/21).

“A urgência de votação fez com que fosse aprovada em 8 minutos, com um substitutivo do deputado Zarattini (Carlos Zarattini, do PT-SP). Essa lei perdeu sua concepção original e foi enfraquecida significativamente tanto na Câmara quanto no Senado”, menciona Livianu.

O substitutivo em questão foi a inclusão da necessidade de provar dolo para punir agentes públicos em crimes de improbidade, ou seja, o ato intencional de lesar a administração pública.

Além desta, o presidente do INAC cita a Lei das Estatais (13.303/16). “Foi um avanço significativo para garantir a eficiência das empresas públicas e das sociedades de economia mista, no que diz respeito à escolha de dirigentes e conselheiros, combatendo o nepotismo político”, lembra.

Conquista, esta, que corre riscos, uma vez que a proposta de mudança na legislação ronda a esfera dos Poderes. No final de 2022, a Câmara aprovou projeto que reduziria de 36 meses para 30 dias o período de quarentena para que pessoas indicadas para a presidência ou direção de empresas públicas pudessem assumir os cargos.

No Senado o projeto gerou controvérsias e travou. Em seguida, o PCdoB entrou com um Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) para tentar agilizar os trâmites no Supremo Tribunal Federal (STF) e conseguiu uma liminar favorável ao pedido em março. “As quarentenas, que são verdadeiras salvaguardas republicanas, estão sendo relativizadas”, avisa Livianu.

“Presenciamos alianças que levaram, por exemplo, ao desmonte da legislação anticorrupção”, menciona. E complementa com a aprovação da PEC 9/23 na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, que propôs anistia aos partidos políticos, proibindo a aplicação de sanções àqueles que descumprissem a cota mínima de recursos para candidaturas de mulheres e negros até as eleições de 2022.

“Essa PEC teve sua constitucionalidade proclamada, mesmo que sua inconstitucionalidade seja evidente. É preocupante que os políticos sejam tratados de maneira diferenciada, quando todos deveriam ser iguais perante a lei”, avalia o procurador.

Roberto Livianu, do INAC
Roberto Livianu, do Instituto Não Aceito Corrupção: assunto deve ser tema de política pública no Brasil.| Divulgação/INAC

Relativização e falta de sistematização

Embora haja pessoas comprometidas com a agenda anticorrupção no Congresso e nos estados, para Livianu, o assunto não é abraçado de forma sistêmica. “Infelizmente, o Brasil nunca teve uma política pública efetiva de combate à corrupção, como temos na educação, saúde e meio ambiente.”

A conclusão é reforçada por Guilherme France, gerente do Centro de Conhecimento Anticorrupção da Transparência Internacional Brasil. Para ele, há muito não se vê ações de porte, que potencializem o tema. “Ao contrário, o Congresso adotou, por exemplo, a prática de orçamento secreto, que apresenta riscos grandes de desvios e corrupção”, menciona.

A própria Lei Anticorrupção (12.846/13), prestes a completar 10 anos, embora tenha resultado em avanços no sentido de coibir a prática no âmbito corporativo, sofre questionamentos. Com ela, empresas desenvolveram setores de compliance e políticas de integridade, além de mecanismos de autorregulação. “Mas os acordos de leniência usados como instrumentos de investigação e que foram celebrados com base nessa lei levantaram alegações de prejuízo às empresas e de impacto econômico na sociedade”, conta France.

Os acordos preveem que empresas investigadas por denúncias de corrupção podem se isentar ou ter as sanções atenuadas, como multas e a pena de inidoneidade (proibição de contratar com o poder público), desde que colaborem com as investigações e o processo administrativo.

“Estudos internacionais apontam que o problema não é o prejuízo isoladamente às empresas, mas à sociedade como um todo. A gente tem vários exemplos no mundo de empresas que foram responsabilizadas, ajustaram suas condutas e continuaram funcionando, com crescimento financeiro”, ressalta o gerente da Transparência Internacional Brasil.

Para o cientista social, doutor em Ciência Política e professor da Escola de Educação e Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e da Unicamp, Eduardo Soncini Miranda, o principal motivo de o assunto perder efetividade é a falta de tecnicidade com que é tratado.

“Muitas vezes, o tema da corrupção salta aos olhos como um assunto pertinente para discussões e movimentos políticos, mas também é instrumentalizado e politicamente manipulado para disputas ideológicas e partidárias”, acredita.

E nenhuma instituição democrática hoje no Brasil, segundo o estudioso, sai ilesa nesse tema. No campo político, a corrupção não tem bandeira partidária. “Vai desde a extrema esquerda até a extrema direita, passando pelo centro, e muitas vezes envolve práticas ilícitas, como nepotismo, troca de apoios e verbas. É como um mecanismo de atuação diária”, define.

O poder judiciário também não escapa. “Nesse sentido ele é ainda menos republicano do que os outros poderes, presta menos contas à sociedade. E está aí cercado de denúncias.”

Caráter punitivo versus preventivo

O Judiciário, inclusive, empreendeu mudanças que resultaram em retrocesso no combate à corrupção. No começo dos anos 2000, um grande avanço acontecia na instituição, com a criação das varas especializadas em lavagem de dinheiro, crimes contra o sistema financeiro e o crime organizado. A exemplo das varas que conduziram a Operação Lava Jato no Rio de Janeiro e no Paraná. “O conhecimento específico delas foi visto como um avanço significativo”, avalia Guilherme France, da Transparência Internacional.

Mas a competência das varas especializadas foi reduzida posteriormente com o deslocamento dos processos penais que mesclem crimes comuns e crimes eleitorais para a Justiça Eleitoral, que, na visão de France, não reúne a estrutura e as condições de atuação das especializadas. “Com isso vimos um aumento de casos que prescreveram e investigações que não foram para a frente.”

O foro privilegiado é outro desafio nesse sentido, já que o STF, responsável por julgar pessoas com prerrogativa de foro, não é a instância mais preparada para tratar de casos criminais. “O Supremo não é institucionalmente desenvolvido para ouvir testemunhas, coletar provas e fazer o trabalho que uma vara de primeira instância faz”, avalia o especialista.

O resultado, para France, é um judiciário que divide seu caráter punitivo. “É leniente com crimes de colarinho branco e corrupção e trata com dureza as classes mais baixas da sociedade.”

A análise, entretanto, vai mais a fundo. “Parto do princípio de que a corrupção não é combatida apenas com punição. Se fosse assim, nossas leis já seriam bastante rigorosas, especialmente no mundo da política”, acredita o cientista político Eduardo Miranda.

Historicamente, o problema da corrupção no Brasil teria evoluído da esfera administrativa para a criminal. Casos como a Operação Lava Jato deram evidência ao tema e chamaram a atenção da sociedade para fatos como compra de apoio e desvio de verbas. Atos, antes, internalizados nos meios políticos e corporativos.

“Mas é preciso também uma organização para enfrentar a corrupção que vá além da ideia de punição. E quando estudamos tecnicamente as medidas que ajudam a pelo menos minimizá-la, percebemos que o que funciona é o investimento em órgãos de controle, regulação e fiscalização, como os tribunais de contas, as agências reguladoras, a Polícia Federal”, explica o cientista político, que não vê muito empenho do Estado em dedicar-se a estudos mais técnicos neste sentido. “Embora existam discussões em âmbito político, ainda não são hegemônicas”, ressalva.

Guilherme France, da Transparência Internacional Brasil
Guilherme France, da Transparência Internacional Brasil: retrocessos no Judiciário, como fim das varas especializadas e foro privilegiado.| Divulgação/Transparência Internacional

E entre políticos e partidos, como anda o tema?

Uma das peculiaridades da pauta anticorrupção é que, em alguns casos, ela consegue unir políticos de todas as gradações ideológicas por um objetivo. E talvez seja este um trunfo a se considerar.

Recentemente aprovado na Câmara, o PL 2.720/23, que torna crime discriminar políticos, é um exemplo emblemático. Enquanto o PT votou majoritariamente a favor e o PL ficou dividido, todos os parlamentares do PSOL e PCdoB, legendas à esquerda, e do Rede, Cidadania e Novo, siglas que vão do centro à direita, votaram contra a proposta – claro que há que se levar em conta que são partidos com representatividade menor no Congresso.

Da mesma forma a PEC 9, da anistia aos políticos, na qual se viu uma aliança curiosa entre parlamentares do PSOL, do partido Novo e da bancada da Lava Jato, representada na Câmara pelo ex-deputado federal Deltan Dallagnol (Podemos-PR) e pela deputada Rosângela Moro (União-SP), esposa do senador Sergio Moro (União-PR).

Um tema que torna difícil enquadrar partidos de forma geral em vista da pluralidade que possuem internamente. “Existem parlamentares em todos os partidos que atuam de forma significativa (contra a corrupção) e não diretamente relacionada à legenda”, pontua Guilherme France.

Mas é verdade que algumas têm se dedicado a propor melhorias neste aspecto de forma mais generalizada entre seus correlegionários. O Podemos, por exemplo, foi o primeiro partido político brasileiro a implantar um sistema de governança, que busca consolidar as boas práticas na própria gestão partidária.

Para o presidente do partido no Paraná, Gustavo Castro, a bandeira se deve, entre outros fatores, à atuação de Alvaro Dias em pautas do gênero. O ex-senador é um dos fundadores do partido. “Foi autor de projetos muito importantes nesse sentido, como o fim do foro privilegiado, e relator de diversos outros, como a Lei de Responsabilidade Fiscal e da PEC que transforma a corrupção em crime hediondo”, cita.

“No Congresso, temos os mesmos heróis da resistência”, considera o ex-deputado Deltan Dallagnol, também do Podemos, que recentemente teve o registro de candidatura impugnado e deixou a Câmara. Ele menciona nomes como o do senador Eduardo Girão (Novo) e Styvenson Valentim (Podemos), além de Moro.

Roberto Livianu, do INAC, também cita outros envolvidos na temática, como Alessandro Vieira (MDB) e Adriana Ventura (Novo), que lidera a pauta de compliance e anticorrupção no partido. O Novo, inclusive, tem endereçado seriamente o tema na prestação de contas feitas mensalmente, de maneira pública, nos gastos de seus mandatários com recursos do Legislativo.

“Batemos muito nessa tecla e nossas propostas focam muito na fiscalização do Executivo”, afirma a vereadora de Curitiba pelo Novo, Indiara Barbosa – que recentemente foi anunciada como pré-candidata à prefeitura nas próximas eleições. Seguindo as prerrogativas do partido em âmbito nacional, a vereadora tem olho na avaliação de gastos desnecessários e na fiscalização contábil. “A gente pega a cada semestre uma grande área da prefeitura para olhar em detalhe, além de observar as finanças e as compras públicas”, exemplifica.

O primeiro projeto de lei da vereadora foi o que instituiu a política municipal de transparência em obras públicas, que já tramitou na Câmara e vai a plenário. Além do projeto que visa à implementação do compliance no Executivo municipal, já aprovado.

As políticas de compliance também foram implantadas no gabinete e há uma comissão que atua para a implementação na Câmara de Curitiba. Para Indiara, a transparência é prioritária quando se pretende uma gestão de combate à corrupção. “Daí a importância da prestação de contas e o acompanhamento de mandatos.”

Em suma, lembra o cientista político Eduardo Miranda, é preciso reconhecer que a corrupção é um problema complexo e que soluções simplistas não são suficientes. “Mas vale investir em mecanismos de fiscalização, controle e inteligência, em conjunto com uma abordagem mais técnica e ampla para combatê-la efetivamente”, conclui.

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