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A Advocacia-Geral da União, dirigida por Jorge Messias, está sendo usada para processar críticos do governo
A Advocacia-Geral da União, dirigida por Jorge Messias, está sendo usada para processar críticos do governo| Foto: José Cruz/Agência Brasil

Quando o apresentador Faustão passou por um transplante de coração depois de apenas uma semana de espera, a internet foi palco de especulações sem embasamento cogitando que o apresentador, homem famoso e abastado, tivesse furado a fila do SUS. Em outros tempos, se é que houvesse acusação de ilegalidade nessas especulações, ela certamente se voltaria contra suposta agressão ilícita à honra do apresentador, enquanto indivíduo. Mas o ano é 2023. Por isso, a reivindicação de ilegalidade que surgiu no caso foi justamente a única que, em outras eras, jamais teria sido cogitada. Por esta tese, a vítima agredida em sua honra não seria Faustão, nem mesmo os hipotéticos profissionais da saúde envolvidos, mas sim… o SUS.

O advogado-geral da União, Jorge Messias, declarou: “Tem causado preocupação a grande quantidade de fake news sobre o Sistema Nacional de Transplantes (SNT). Determinei à Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia (PNDD) que avalie a situação e atue de imediato na proteção dessa importante política pública para o país.”

Por “atuar”, Messias presumivelmente quer dizer processar pessoas — no cível ou, como assistente da acusação, no criminal 1 por duvidarem, falarem mal ou compartilharem inverdades sobre o SUS. Afinal, se o intuito fosse esclarecer a verdade, seria o caso de fazer determinação ao setor de comunicação — não à procuradoria.

Desde então, o órgão também já foi acionado contra o jornalista Alexandre Garcia por fala sobre enchentes no Rio Grande do Sul. O ex-deputado federal Jean Wyllys (PT) afirmou que seria imputada ao jornalista a prática de crime contra a honra (difamação), opinando que “o governo Lula tem o direito de se defender”.

O que é a Procuradoria de Defesa da Democracia?

A procuradoria mencionada por Messias (e rapidamente apelidada pela oposição de “Ministério da Verdade”) é, antes de tudo, um órgão dentro da Advocacia-Geral da União (AGU), cujo nome é autoexplicativo: da mesma forma que grande parte das empresas privadas têm o seu departamento jurídico, também a União (esfera federal do poder) mantém advogados seus empregados internamente, inclusive para processar indivíduos, quando houver interesse da União envolvido.

A questão toda diz respeito a quais interesses seriam esses. Um cidadão comum, por exemplo, tem o direito a não ter a imagem atacada injustamente, porque é um dos bens mais preciosos do ser humano. Mas o SUS não é humano. Nem “o governo Lula”, citado por Jean Wyllys. Por isso mesmo, no Brasil, sempre houve maior resistência em se reconhecer dano ilícito à reputação de pessoas jurídicas em geral, por suas evidentes diferenças em relação a uma pessoa natural — sobretudo, a impossibilidade de sofrer abalo psíquico.

No caso de empresas ou outras entidades privadas, até se admite essa possibilidade, apenas porque, como suas finanças dependem de transações voluntárias, um abalo à sua imagem (promovido de má-fé por um concorrente, por exemplo) pode trazer grandes perdas financeiras, que podem ser tratadas, então, como um dano moral ficto.

Mas, como já foi inclusive reconhecido pelo STJ, esta justificativa não existe no caso de um ente público. Isto porque o Estado não se sustenta por transações voluntárias, mas sim por pagamentos forçados — que independem do grau de estima que o pagador tenha pelo recipiente.

A antiga liberdade de falar mal do Estado

Ao mesmo tempo, no caso do Estado, existem razões poderosas de filosofia política para proteger a liberdade de crítica: atacar a reputação dos órgãos de Estado ou da forma como são geridos é da essência da democracia.

Em 2013, por exemplo, no Recurso Especial n.º 1.258.389, o STJ disse não ao Município de João Pessoa quando ele pediu danos morais contra uma rádio local por ataques contra o governo municipal, que incluíram acusação de ilícitos. O relator, ministro Luis Felipe Salomão, declarou que o STF nunca na história tinha admitido a possibilidade de o Estado deter direito de imagem ou honra, a ser respeitado pelos cidadãos. Declarou, ademais, que os direitos fundamentais existem para proteger os cidadãos contra o Estado, e que seria uma “completa subversão” da sua essência invocá-los para proteger o Estado contra os cidadãos.

E assim é.

A nova proibição

Mas tendências em contrário têm ganhado força nos últimos tempos. A prova mais eloquente desta transformação é que o mesmo ministro Luis Felipe Salomão, que defendera a antiga ideia de forma tão eloquente, mudou seu entendimento e, já em 2021, no TSE, ao ordenar a desmonetização de diversos canais de YouTube, justificou a medida atribuindo a eles a conduta de “atacar a imagem da Justiça Eleitoral“.

No entanto, a virada mais digna de nota — que possivelmente tenha sido pioneira da nova tendência — foi anterior e ocorreu em outro órgão: no STF, em 14 de março de 2019. Nesta data, o então presidente Dias Toffoli instaurou o polêmico Inquérito das Fake News, alegando a necessidade de investigar criminalmente condutas que “atingem a honorabilidade [...] do Supremo Tribunal Federal [e] de seus membros”. Ao formular a frase assim, e ao separar a instituição dos indivíduos em carne e osso que a compunham, o ministro deixava expresso que ambos — tanto os ministros quanto o tribunal em si — tinham direito à “honorabilidade”.

Um exemplo foi o episódio de 2018 em que um advogado que compartilhava avião com o então ministro Ricardo Lewandowski veio lhe dizer (sem individualizar ministros) que considerava o STF “uma vergonha”. O ministro reagiu chamando a Polícia Federal; em nota depois publicada por seu gabinete, disse que se tratava de “um ato de injúria” ao STF — deixando, já então, implícito, ainda fora dos autos, que órgãos públicos podiam ser vítimas de crime contra a honra. Este evento foi um dos motivadores da posterior instauração do inquérito, que, em um de seus desenvolvimentos, viria a investigar indivíduos por postarem hashtags como #STFVergonhaNacional. Já no Inquérito das Milícias Digitais, em mais de uma ocasião, apareceu listada, entre um rol de supostos crimes investigados, a conduta de “promove[r] o descrédito dos poderes da república”.

A tendência só se fez expandir. Ainda em 2019, o TSE editou nova resolução (a de n.º 23.610) reproduzindo o verbo usado na fundamentação do inquérito original do STF, passando a proibir qualquer candidato, em propaganda eleitoral, de “atingir órgãos ou entidades que exerçam autoridade pública” — regra que, em 2022, levou à punição de Deltan Dallagnol por criticar o STF e que, por sua temerária redação, poderia ser usada, em tese, para vedar críticas a qualquer outro órgão de Estado.

Intensificação no governo Lula

Até 2023, a criminalização de se atingir a honra de órgãos públicos parecia estar tendo efeitos restritos à cúpula do Judiciário, que foi justamente onde nasceu este novo entendimento.

Mas, em 2023, assumiu o novo governo. Logo no primeiro dia de mandato, o presidente Lula assinou o Decreto n.º 11.328, e eis que lá esteve previsto um novo órgão dentro da AGU, com atribuição para atuar na Justiça “para defesa da integridade da ação pública e da preservação da legitimação dos Poderes e de seus membros para exercício de suas funções constitucionais”; também “para resposta e enfrentamento à desinformação sobre políticas públicas”.

Por trás do opaco palavreado, a função prevista para o novo órgão, portanto, é processar pessoas que atinjam a honra ou imagem do governo, dos membros do governo, ou dos órgãos de Estado em geral. O governo Lula, assim, tenta institucionalizar definitivamente o novo regime jurídico onde, na feliz formulação do ministro Salomão, o direito não mais existe para proteger os cidadãos do Estado, mas sim para proteger o Estado dos cidadãos.

Orwellianamente, isto foi feito mediante a criação de um órgão batizado de Procuradoria de Defesa da Democracia. A palavra significa, etimologicamente, “poder do povo”, mas, qualquer que tenha sido o objetivo ao se criar o órgão, empoderar o povo é que não foi.

Hugo Freitas Reis é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais

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