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Manifestantes protestam contra o STF no Rio de Janeiro.
Manifestantes protestam contra o STF no Rio de Janeiro.| Foto: Mauro Pimentel/AFP

O insensato desfile de condenados em segunda instância saindo das prisões, libertados em decorrência de disputada decisão do Supremo Tribunal Federal concluída no dia 7 de novembro passado, muitos deles réus confessos, inclusive de gravíssimos crimes de fraudes sistêmicas e desvios de elevadas quantias de dinheiro público, delitos que afetam toda a sociedade, especialmente os mais pobres, dependentes do serviço público, exige um aprofundamento sobre esse triste ponto da nossa história.

A democracia é um caminho, um processo amplo, uma busca contínua de liberdade, fraternidade e justiça. Acidentes acontecem nesse caminho democrático, muitas vezes decorrentes de conjunturas inusitadas, armadilhas propositadas, becos sem saída, cochilos e escorregões das instituições encarregadas do processo democrático. É nesse quadro mais amplo que deve ser analisada a recente e respeitável decisão da nossa suprema corte.

Uma frase inocente, óbvia, retórica, tautológica, dessas de fácil aprovação em grandes assembleias, que não determinam consequência clara e direta, dizendo "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória", colocada na Constituição de 1988, levou o país a uma situação inesperada e até constrangedora, gerando perda de tempo, energia e descrença na justiça, uma das bases da democracia.

Por óbvio, se ainda não acabou o processo, se ainda pode haver mais um recurso, o acusado não pode ser considerado definitivamente culpado

O texto constitucional acima transcrito não fala de prisão ou mesmo em cumprimento de pena. Fala de culpado, aquele sobre o qual foi lançado culpa definitiva. É uma norma que nem precisaria estar escrita na Constituição, é um truísmo. Por óbvio, se ainda não acabou o processo, se ainda pode haver mais um recurso, o acusado não pode ser considerado definitivamente culpado. Por que o texto constitucional não fala clara e diretamente de trânsito em julgado para início do cumprimento da pena de prisão, com todos os elementos para aplicação imediata? Porque não seria aprovado pela Assembleia Constituinte, ante as danosas consequências jurídicas e sociais imediatamente decorrentes.

A privação da liberdade de ir e vir é tratada na Constituição como prisão, em vários incisos (LIV, LXI, LXII, LXIII, LXIV, LXV, LXVI e LXVII) do artigo 5.º. A Constituição constrói e restringe o direito estatal de cercear a liberdade com base no termo prisão. A Constituição delimita completamente os requisitos da prisão e privação da liberdade (devido processo legal e ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente), sem qualquer menção de trânsito em julgado.

Se o consenso dominante na Constituinte fosse impedir o cumprimento da pena antes do trânsito em julgado, a Constituição, que tanto fez uso do termo "prisão", não seria grafada, em questão tão importante (início do cumprimento da pena de prisão), com palavra e conceito diferente ("culpado"), fazendo uso de regra indireta e velada. O conjunto de normas da Constituição permite concluir que não houve opção deliberada do legislador constituinte em exigir trânsito em julgado para início do cumprimento da pena de prisão.

Em todas as Constituições anteriores não havia essa regra, nem semelhante, vinculando a culpa do acusado ao trânsito em julgado da sentença. Mesmo assim, não havia qualquer dúvida de que o réu somente seria considerado culpado quando transitado em julgado o último recurso, tanto que sempre foi costumeiro constar das sentenças penais o secular jargão "transitado em julgado, lance o nome do réu no livro dos culpados". O velho bordão foi arrastado para a Constituição sem o menor propósito de vincular cumprimento de pena de prisão ao trânsito em julgado.

O requisito exigido pela nossa Constituição para privar a liberdade de qualquer cidadão é o devido processo legal, como determina o artigo 5.º, inciso LIV: "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal". A Constituição, portanto, tem regra certa e determinada quanto à condição necessária para cumprimento da pena de prisão, qual seja, a observância do devido processo legal, dispensando ilações, interpolações e interpretações apaixonadas.

O devido processo legal ocorre na primeira instância, onde os acusados são ouvidos, produzidas as provas e realizada a ampla defesa. Prolatada a sentença, concluído está o devido processo legal. Os recursos para instâncias superiores permitem apenas revisão do devido processo legal. Os condenados no foro privilegiado do Supremo começam a cumprir a pena após a sentença de instância única, sem direito a qualquer revisão, e ninguém ousa dizer que não foi cumprido o devido processo legal.

Possibilidades de revisões de sentenças oportunizadas pelo sistema judicial estão além do devido processo legal, não podendo impedir o início do cumprimento da pena. Exatamente por isso a maioria esmagadora das democracias do planeta determina o cumprimento da pena após julgamento da primeira ou segunda instância, porque já atendido o devido processo legal. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o Pacto de São José da Costa Rica, documentos fundamentais sobre cidadania e democracia, não asseguram o direito de sempre recorrer em liberdade.

Pois bem, 21 anos depois da Constituição de 1988, em 2009, o Supremo foi convencido, por maioria, de que a proibição de culpa antes do trânsito em julgado incluía a proibição de prisão para início de cumprimento da pena, dando aos acusados o direito de recorrer em liberdade por todas as quatro instâncias de julgamento do nosso sistema judicial, contrariando sedimentada história de prisão após segunda instância, alargando espetacularmente o espaço para interposição de recursos, colocando o Brasil na condição de campeão mundial de recursos protelatórios e demora processual, fortalecendo o sentimento de ineficiência judicial, descrença e injustiça.

O parlamento também deu sua contribuição. Seduzido por fortes interessados na demora processual, rapidinho, em 2011, aprovou uma lei ordinária (Lei 12.403/2011), na folgada garupa da decisão do Supremo de 2009, confirmando textualmente a danosa ilação de que ninguém pode ser preso para cumprimento de pena até o julgamento do último recurso, adaptando, nesse sentido, a redação do agora famoso artigo 283 do Código de Processo Penal, institucionalizando o assim chamado princípio da inocência absoluta.

A aplicação da nova regra, propagada como princípio da inocência, a partir de 2009, durou apenas sete anos. Um caos de injustiças e desequilíbrios exigiu mudanças. O tresloucado sistema de quatro instâncias de julgamento e centenas de recursos intermediários passou a permitir que os mais ricos e poderosos ficassem impunes, salvos pelo decorrer do tempo processual, demoras e vergonhosas prescrições. Em 2016, o Supremo, reconhecendo o disparate, voltou à antiga jurisprudência, autorizando a prisão após segunda instância, afastando aplicação do artigo 283 do Código de Processo Penal. Em 2017 e 2018, o Supremo voltou ao assunto, confirmando a decisão histórica de 2016.

Agora, em 2019, em momento ainda mais explosivo, após polarizada eleição presidencial, com o mais importante líder popular da esquerda e ex-presidente da República preso após decisão de segundo grau, o Supremo decide, com voto de desempate de seu presidente, voltar na jurisprudência do princípio da inocência absoluta, que vigorou entre 2009 e 2016. A probabilidade de nova mudança no curto prazo é quase certa, ante a possibilidade de nomeação de dois ministros favoráveis à prisão após segunda instância.

Não consta da Constituição o alegado princípio da inocência absoluta. Também não consta que o condenado somente pode começar a cumprir a pena após o julgamento do último recurso possível. A Constituição autoriza expressamente a prisão em flagrante no início do processo. A prisão provisória, processual ou para garantir a ordem pública, é reconhecida e aceita como constitucional, mesmo não tendo trânsito em julgado e culpa definitiva. Todas decorrem de uma necessidade insuperável.

O mesmo ocorre com o cumprimento de pena após o julgamento da segunda instância. É também uma necessidade insuperável. Se não for aplicada, vai inviabilizar o funcionamento do sistema penal e da Justiça. Dezenas de recursos levarão os processos penais até a suprema corte, gerando inaceitável demora, prescrição e impunidade. Criminosos poderosos, que podem contratar defesa estruturada, não serão presos em prazo razoável. Um reduzido grupo ganha, a sociedade perde.

É insustentável querer retirar do texto constitucional um princípio absoluto, que proíbe a prisão antes do trânsito em julgado na quarta instância, inviabilizando o sistema punitivo, quando a própria Constituição permite prisão processual para proteger o processo penal, que é mero instrumento do sistema punitivo e permite prisões provisórias para proteger a ordem pública. A inviabilização do sistema punitivo é a própria negação do processo penal e da ordem pública.

A própria Constituição tem exemplo que permite infirmar o famigerado princípio da inocência absoluta. É o caso do processo de julgamento do presidente da República por crime de responsabilidade, previsto no artigo 86 da Constituição, que determina que o presidente seja suspenso de suas funções com o recebimento da queixa-crime pelo Supremo ou após instauração do processo pelo Senado, muito antes do trânsito em julgado.

A inviabilização do sistema punitivo é a própria negação do processo penal e da ordem pública

O parágrafo 3.º do artigo 85 determina que, “enquanto não sobrevier sentença condenatória, nas infrações comuns, o presidente da República não estará sujeito a prisão”, indicando claramente que a Constituição, quando quer proibir a prisão, diz expressamente. Neste caso importante, da prisão do presidente da República, a Constituição não fala de trânsito em julgado, apenas em sentença condenatória.

Há ideias inadequadas aparecendo para tentar amenizar o descalabro, como impedir prescrição após julgamento da segunda instância e autorizar outras hipóteses de prisão provisória após segunda instância. As duas soluções não resolvem o problema maior, a demora inaceitável (10 a 20 anos para prisão), decorrente da espera de quatro instâncias, dezenas de recursos e habeas corpus sem limites. Essas soluções consagram a demora, o subjetivismo e certamente elevarão insuportavelmente o número de presos provisórios.

Pode parecer que os tribunais superiores (STF e STJ) perdem poder com a regra de prisão automática (sem subjetivismos) após a condenação em segunda instância, especialmente após o sucesso da Operação Lava Jato e prisão em tempo razoável de importantes figuras da política, dirigentes de estatais e grandes empresários. Pode parecer também que as defensorias perdem poder e campo de trabalho com essa eficiência. Mas não é a leitura correta. Na verdade, é um aprimoramento do sistema penal, que deve ser saudado e protegido, porque ganha toda a sociedade brasileira e o Judiciário como um todo.

A lambança está feita e ocorreu dentro do processo democrático. Resta à sociedade organizar-se para levar seu descontentamento ao parlamento e, fazendo uso do mesmo processo democrático, exigir mudança na legislação, exigir a volta da prisão para cumprimento de pena após condenação em segunda instância, a volta ao antigo costume e normalidade judicial, seguindo o modelo das mais importantes democracias, permitindo que a justiça penal seja realizada em tempo razoável, dando cumprimento a determinação expressa da Constituição (também direito fundamental previsto no artigo 5.º, LXXVIII), de modo a manter a crença no Judiciário e no Estado Democrático de Direito.

José Jácomo Gimenes é juiz federal e foi professor do Departamento de Direito Privado e Processual da UEM.

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