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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Era movido por uma curiosidade extrema, num desejo de compreensão que o levara a trilhar, durante anos, o caminho que ia da pequena propriedade da família à escola da vila, sempre com os pés descalços, iguais a raízes no pó e no barro – só colocava as botinas na hora de entrar na sala. Depois vieram o ginásio e o científico, já na sede do município. Não cursou nenhuma faculdade, cuidaria dos pais até a morte deles. Trabalhando na prefeitura como funcionário público, aprendeu a escrever corretamente pela leitura dos clássicos da língua. Talvez por isso, em homenagem a outros tempos, gostasse de andar pela rua com ternos claros e de gravata.

Outros cultivavam hortaliças e frutíferas nos quintais. Ele cuidou de uma estante de madeira, que florescia eternamente com seus frutos de papel, colhidos nos momentos de lazer. Não era uma planta espontânea, mas construída.

– Há o que somos e o que nos fazemos ser – gostava de repetir nas conversas com os poucos amigos.

– Curiosidade se mata nos livros – outra de suas frases.

E viveu na paz doméstica até a aposentadoria.

Mas ao longo de décadas ouvira tanto falar do mar que se sentia obscuramente atraído por ele. O mar sempre aparecia nos livros. Ele chegava a sentir a brisa movendo páginas enquanto lia obras com cenários marinhos.

Não sabe quando começou o medo das ondas. Ao menor sinal de chuva, recolhia-se. Há um mar oculto nas nuvens, pensava. Durante as tempestades, como um menino, ele se escondia no quarto para ouvir música. O volume no máximo.

No final do ano, quando muitos iam ao litoral, ele passava as férias na varanda dos fundos, para não presenciar as partidas, e também para não saber das chegadas, pois as pessoas podiam lhe trazer notícias do sal daquelas águas. Este era um período difícil para ele. Ainda bem que tinha os livros. E então relia romances sertanejos, perdendo-se em paisagens secas.

Mas a mulher punha tudo em perigo. Conversava com as amigas que já tinham estado no litoral. Chegou a comprar escondido um maiô, usado em casa quando o marido estava no trabalho. Respeitava o medo de seu homem, mas ousava sussurrar a própria vontade.

– Só a ideia do mar já é um risco – ele sempre dizia.

Um pouco antes de a mulher morrer, ele descobriu a sua coleção de postais marinhos. Em uma delas, havia, num aquário, um peixe qualquer – nunca aprendera a identificar os peixes – que respirava abrindo as guelras. Ele não sabe por que se sentiu sufocado com a imagem. Quis se desfazer daquilo, mas era o mundo secreto da mulher. Não podia roubar dela também isso. Devolveu os cartões ao baú.

E logo começou a sonhar com a água. Pior do que isso. Começou a se sonhar na água. Ele descia ao fundo do mar, e se via como aquele peixe. Forçava o ar pelas guelras. E acordava sufocado.

– Algum problema no coração, a mulher pensava. Logo morrerá, me deixando sozinha no mundo. Se ao menos tivéssemos tido um filho...

Ele nunca falou dos sonhos, herança do desejo da mulher. Ela nem se imaginou tocando no assunto de praia e crianças. Eram dois velhos. Tudo já havia acontecido com eles.

Quando ela morreu, ele continuou com saúde. Nos primeiros meses, não saiu de casa.

– A diferença entre mim e ela é que meu túmulo é mais espaçoso e posso me mover dentro dele – ele se consolava.

Sabia que para poder voltar à vida normal devia secar as fontes da casa. Num dia de mais coragem, foi até o baú e pegou os cartões postais. Queimar? Mas que fogo pode destruir o mar? Então seria melhor rasgar aquelas lembranças. Mas, como a Moisés, o mar se abriria e depois voltaria a se fechar. E não havia um povo sagrado para cruzar a pé por ele. Jogar tudo no lixo, então? Libertado, o mar invadiria a rua, a casa, a cidade. Era melhor que o mar ficasse ali.

Todos os dias, antes de dormir, como se estivesse conferindo a tranca das portas, ele verificava se os saquinhos plásticos com a coleção estavam bem lacrados. À noite, não só se sonhava peixe como ainda ouvia o bater das ondas contra as pedras, num chamamento insistente.

– Não resistimos ao que tememos.

Foi com este argumento que ele se despediu dos amigos, colocando os seus ternos numa mala, e tomou o ônibus para a capital. De lá, iria enfrentar enfim o mar.

O povo não pressentiu coisa boa, mas ele nunca dera liberdades para que se intrometessem em sua vida. Não pediu para que ninguém cuidasse da casa ou pagasse suas contas.

Chegou ao litoral numa manhã de sol. Terno bege, sapatos lustrados e a gravata de funcionário o acompanharam à praia. Lá estava o sorvedouro. Durantes milênios aquelas águas cumpriam o mesmo movimento. Ele se sentou à mesa de um restaurante e passou o dia olhando tudo de longe. Pediu carne para o almoço. Nada de peixes. Levantou-se no meio da tarde, foi direto à areia, pisou na onda com raiva, foi entrando, a água já afogava o nó da gravata quando uma leva maior, furiosa, o derrubou e a corrente o puxou para o fundo.

Foram poucos segundos, mas ele, que sempre tivera interesse pelas coisas, compreendia enfim o que nenhum livro poderia lhe explicar daquela forma, o obscuro maquinismo da respiração dos peixes. Ele acionou as guelras – mas como bem sabia, elas eram inexistentes – e se deixou afogar, pacificado com sua sina de falso anfíbio.

Os jornais no outro dia falaram em suicídio.

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