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Casamento poliafetivo: e o juiz citou… Lulu Santos
| Foto: NoName_13/Pixabay

Segundo noticiado por O Globo, a 2.ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Novo Hamburgo (RS) reconheceu a união estável poliafetiva entre três pessoas – duas mulheres e um homem – em 28 de agosto. Um casal que mantinha relação com outra mulher havia dez anos buscava oficializar a relação, com repetidas negativas de cartórios, e contratou um escritório para defender seu caso na Justiça. A decisão favorável veio do juiz Gustavo Borsa Antonello.

Mas sob qual fundamento? Conforme a citação da sentença na reportagem, a busca da felicidade: “O que se reconhece aqui é uma única união amorosa entre três pessoas: um homem e duas mulheres, revestida de publicidade, continuidade, afetividade e com o objetivo de constituir uma família e de se buscar a felicidade”.

Trata-se de um novo capítulo da grande revolução afetiva contemporânea; e um capítulo muito importante. A legitimação dos novos modelos de família recebeu um impulso definitivo com a equiparação entre a paternidade biológica e a paternidade socioafetiva pelo STF, na famosa Repercussão Geral 622 relatada pelo ministro Luiz Fux. Segundo a tese central, “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”. Nos termos do jurista Ricardo Calderón: a socioafetividade e a multiparentalidade foram reconhecidas pelo STF.

O que estamos presenciando agora é o completo descolamento da ordem social de sua base natural evolutiva e biopsíquica; mas também de sua teleologia moral, refletida no casamento monogâmico heterossexual

Calderón é, juntamente com Maria Berenice Dias, um dos grandes expoentes nacionais no movimento dos “Direitos Afetivos”, que propõe, em poucas palavras, a completa submissão da ordem familiar ao individualismo expressivo e, assim, ao moderno capitalismo emocional. Eles não diriam isso, obviamente; mas o ataque predatório do individualismo expressivo sobre a moralidade, a religião e o direito é um resultado direito do sistema de hiperconsumo segundo um dos autores mais prezados pelo próprio Calderón: Gilles Lipovetsky.

Segundo tratamos nessa coluna, a moralidade que fundamenta a revolução afetiva é uma espécie de epicurismo psicologizado, resultante do triunfo da mentalidade terapêutica ao longo do século 20. Esse epicurismo pós-moderno estabelece o bem-estar emocional e a autenticidade como uma Lex Legum na organização da vida moral, afetiva e familiar. Calderón chama isso de “família eudemonista”, focada na felicidade individual de seus membros; mas o epicurismo era apenas uma das doutrinas clássicas da felicidade. Seria melhor falarmos em uma eudemonística liberal, a doutrina de felicidade do individualismo expressivo.

Esse epicurismo pós-moderno levou à corrupção da moralidade, à distorção do direito de família e, ao contrário do que pretende, injustiça para mulheres e famílias. A militância da nova esquerda e do afetivismo jurídico tende a transformar instituições culturais e sociais em tecnologias do Self, ferramentas de autoafirmação e autoexpressão do indivíduo moderno, epicurista, secularizado e individualista. Há um paralelo aqui com a indústria, quando o aumento de alguns confortos produz dejetos tóxicos e altamente poluentes. A expansão irracional dos direitos individuais traz custos sociais que são externalizados e disseminados, atingindo principalmente os mais vulneráveis. Ninguém sofre mais os efeitos destrutivos da flexibilização do casamento e dos deveres dos pais biológicos do que as mulheres e crianças da periferia, por exemplo.

Pois bem: aparentemente foi essa ideologia, segundo se depreende de uma reportagem anterior de Gabriel Stohr no portal Vale dos Sinos, a estrela-guia do juiz Gustavo Borsa Antonello em sua sentença autorizando o “trisal”. Stohr cita a sentença: “Hoje, o que identifica uma família é o afeto, esse sentimento que enlaça corações e une vidas. A família é onde se encontra o sonho de felicidade. A Justiça precisa atentar nessas realidades”. E o juiz concluiu o texto nesses termos:

“Finalizo essa decisão, permitindo-me transcrever a poesia de Lulu Santos, em canção lançada no início da década de 80:

(…)

Eu quero crer no amor numa boa
Que isso valha pra qualquer pessoa
Que realizar a força que tem uma paixão
Eu vejo um novo começo de era
De gente fina, elegante e sincera
Com habilidade pra dizer mais sim do que não

Hoje o tempo voa, amor
Escorre pelas mãos
Mesmo sem se sentir
Não há tempo que volte, amor
Vamos viver tudo que há pra viver
Vamos nos permitir

(Tempos modernos, Lulu Santos)”

Os novos modelos de família emulam até certo ponto o que a família natural faz, mas não completamente. É por isso que o casamento e a família natural deveriam ter uma proteção especial do Estado

A citação é muito interessante, fazendo transparecer a íntima conexão espiritual entre o Judiciário moderno e o ideário moral da elite cosmopolita nacional, conexão essa demonstrada em múltiplos níveis. Do Direito à produção midiática, passando pela universidade e pelo jornalismo, trata-se do mesmo estilo moral: “vamos viver tudo o que há pra viver... vamos nos permitir”: a epítome do epicurismo pós-moderno.

O comentário do grupo de advogados, citado por Stohr, também é muito instrutivo:

“Cada vez mais a Justiça tem compreendido o valor da família, tendo o amor e o afeto como norteadores desta construção familiar. Em um momento em que as forças conservadoras do nosso país lutam para reprimir toda forma de amor, esta decisão vem justamente para mostrar que absolutamente nada pode ser maior que o amor.”

Não é de se admirar que o Brasil esteja em pé de guerra. A elite cosmopolita se imagina lutando pelo amor; e os pobres-diabos parecem realmente acreditar nisso.

O que estamos presenciando agora é o completo descolamento da ordem social de sua base natural evolutiva e biopsíquica; mas também de sua teleologia moral, refletida no casamento monogâmico heterossexual. A superioridade dessa forma de união já era reconhecida no mundo clássico, em Aristóteles, por exemplo. Mas a hegemonia do casamento monogâmico como pacto ou sacramento, que costumo chamar de casamento agápico, é uma das grandes dádivas da igreja cristã e ajudou a criar a civilização ocidental.

Essa forma de casamento sintetiza o mais alto grau de união entre duas pessoas, homem e mulher, nas promessas da conjugalidade, com a mais profunda união entre pessoas mais jovens e pessoas mais velhas, na parentalidade natural. Note o leitor: apenas no casamento monogâmico temos essas duas conexões, sincrônica e diacrônica, operando em bases biológicas e naturais. Os novos modelos de família emulam até certo ponto o que a família natural faz, mas não completamente. É por isso que o casamento e a família natural deveriam ter uma proteção especial do Estado; eles cultivam, guardam e oferecem bens humanos específicos de valor público e comum.

Mas esses bens vêm se tornando cada vez menos visíveis no mundo contemporâneo. E o Judiciário brasileiro é responsável por isso, das menores instâncias até o STF. Esses poderosos, que trocaram Aristóteles e o apóstolo Paulo por Lulu Santos, não serão lembrados por sua sabedoria.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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